O Haiti encontra-se mergulhado num contexto de violência extrema na sequência de uma grave crise política que está longe de chegar ao fim. A população vive com medo constante e tem dificuldade em alimentar-se. O problema central são os gangues que dominam o país há várias décadas.
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O que se passa no Haiti?
O Haiti encontra-se em suspenso enquanto aguarda a formação de um Governo de transição depois de o primeiro-ministro Ariel Henry ter pedido a demissão a 11 de março. A queda do chefe de Governo teve como motivação a onda de violência que se disseminou no final de fevereiro, quando vários gangues que operam no país se uniram para derrubar o líder.
De que forma se fez sentir esta onda de violência?
Os gangues armados, que controlam áreas inteiras do país, incluindo 80% da capital Porto Príncipe, aproveitaram que o primeiro-ministro estava fora para uma viagem ao Quénia para atacarem várias infraestruturas, incluindo esquadras de polícia e escritórios governamentais. Além disso, duas das maiores prisões do Haiti foram invadidas pelos criminosos, o que originou a fuga de mais de três mil reclusos.
A libertação dos prisioneiros – muitos deles líderes das organizações criminosas que controlam várias regiões do país – impulsionou uma escalada de violência que fez com que mais de 17 mil pessoas se deslocassem das suas terras. Os frequentes ataques armados resultaram na morte de várias pessoas, sendo que, ao longo das últimas semanas, muitos corpos foram sendo encontrados ao abandono. A população vive com medo constante de raptos e extorsões e não tem muito que comer.
Quem vai assumir as rédeas do país?
Logo após a demissão do primeiro-ministro Ariel Henry, foi criado um Conselho Presidencial de transição, sendo que deverá representar as principais forças políticas do Haiti, bem como o setor privado, a sociedade civil e a comunidade religiosa. Prevê-se que seja composto por sete membros com direito de voto e dois observadores sem intervenção ativa.
Embora ainda não tenha sido oficialmente criado, o conselho emitiu, esta quarta-feira, o primeiro comunicado, no qual prometeu restabelecer a ordem constitucional. "Juntos, vamos pôr em prática um plano de ação claro destinado a restabelecer a ordem pública e democrática”, afirmaram os membros deste organismo, em comunicado. “Assim que estiver instalado, o Conselho Presidencial nomeará um primeiro-ministro, com o qual formará um Governo de União Nacional e recolocará o Haiti no caminho da legitimidade democrática, da estabilidade e da dignidade”, acrescenta o documento, citado pela agência AFP.
O que diz a comunidade internacional?
Numa reunião de emergência realizada no dia em que o primeiro-ministro renunciou ao cargo, a Comunidade das Caraíbas (Caricom) e os seus parceiros encarregaram os partidos políticos do Haiti e o setor privado a criarem as autoridades de transição.
A reunião também contou com a participação de representantes do estado afetado, da ONU, dos EUA e de outras nações cooperantes. O Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou, em outubro do ano passado, o envio de uma missão internacional para o Haiti, mas a deslocação continua pendente, já que os gangues não aceitam a entrada de presença internacional no país.
Que países retiraram cidadãos do Haiti?
À medida que a insegurança foi aumentando dentro do território, a presença internacional no Haiti diminuiu. A ONU e as embaixadas dos EUA e do Canadá retiraram funcionários este mês. Também a República Dominicana retirou dezenas de cidadãos de helicóptero, enquanto as Filipinas informaram que iriam repatriar pelo menos 63.
No início da semana, a China anunciou a retirada em segurança de 24 cidadãos chineses do Haiti. Esta quarta-feira, mais de 170 cidadãos franceses e cerca de 70 europeus e estrangeiros foram levados do Haiti, anunciou o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês.
Como é que o Haiti se tornou num país tão violento?
De acordo com um relatório da organização Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional, no Haiti “os gangues são um fenómeno de longa data, estando ligados a uma tradição de grupos armados não estatais que remonta aos anos 1950”. Entre 1957 e 1986, o ditador “Papá Doc” e depois o seu filho, Jean-Claude Duvalier, submeteram a população ao controlo total destas milícias que, ao longo dos anos, apoiavam o poder político e semeavam o terror na população.
Segundo um relatório da ONU, apresentado em setembro de 2023, atualmente, existem cerca de 200 gangues que utilizam “armas de fogo sofisticadas” e se dedicam ao “tráfico de armas ou drogas, extorsão, sequestro, assassinato, violência sexual e desvio de camiões”. As coligações G-Pèp e a Família G9 aglomeram organizações mais pequenas que se envolvem em guerras territoriais quotidianas, mas que se unem quando é necessário engendrar planos de grande escala, como o que aconteceu no fim de fevereiro. Além da extorsão, os gangues subsistem através do tráfico de drogas, principalmente da cocaína e canábis.
Quais as consequências para a população?
Além de a população viver mergulhada num clima de terror, também não tem acesso facilitado a alimentos e medicamentos. A situação humanitária no Haiti pode resultar na morte de “inúmeras crianças”, especialmente por falta de cuidados de saúde e nutrição, alertou, esta terça-feira, a diretora executiva para a infância da UNICEF, Catherine Russell.
“Milhares de crianças estão à beira do abismo, enquanto os bens vitais estão prontos para serem entregues se a violência acabar e as estradas e os hospitais forem reabertos”, vincou a responsável, que pediu ainda a abertura de “espaços humanitários” no território.
Quase cinco milhões de pessoas – cerca de metade da população do país – foram levadas a “altos níveis de insegurança alimentar aguda” desde o aumento da violência, de acordo com um relatório publicado em março pela Classificação Integrada da Fase de Segurança Alimentar (IPC).