O autodenominado "maior exército da Europa" está encalhado num naco de território a mirrar no país vizinho. Quase um ano depois da invasão da Ucrânia, a "operação tática especial" russa prolonga-se no terreno, travada na valentia da resistência ucraniana. Mas o exército local enfrenta problemas, que Zelensky quis aplacar com uma lei polémica e contraproducente, de acordo com os opositores.
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A valentia e a resiliência dos soldados ucranianos surpreenderam o mundo. Apoiado por meios do Ocidente, o Exército da Ucrânia não só resistiu aos primeiros avanços da Rússia como recuperou terreno numa ofensiva de fim de outono. O inverno arrefeceu o passo da guerra, mas com a aproximação da primavera ambos os países se preparam para a contraofensiva.
O afluxo de milhares de recrutas no Exército ucraniano, pressionado pela ameaça russa, comprometeu o processo natural de escrutínio; foram admitidos soldados que, em tempos de paz, nunca passariam de civis. Temendo os efeitos de falhas disciplinares, desobediências e deserções, Kiev endureceu medidas disciplinares, com o objetivo de reforçar o combate e assegurar a vitória, com a aprovação da Lei 8271, que está a cair mal entre os civis mobilizados e algumas chefias militares.
"A obediência à disciplina militar é a chave para a capacidade de combate das unidades militares e para a vitória da Ucrânia", justificou o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, na resposta a uma petição contra a Lei 8271, cujo nome completo é "Das Emendas ao Código Criminal da Ucrânia, o Código Administrativo de Ofensas e outros atos legislativos da Ucrânia tendo em vista as especificidades do serviço militar ao abrigo da lei marcial ou condições de combate". Quase 35 mil pessoas assinaram o documento que expressa preocupações com o novo quadro legislativo a aplicar aos soldados ucranianos, muitos deles civis fardados à força do destino.
A Lei 8271, aprovada a 2 de fevereiro, acrescenta o novo Artigo 266-1 ao Código Administrativo de Ofensas. Dá às lideranças a autoridade para examinar os recrutas e pessoal militar para o consumo de álcool, drogas ou outros produtos estupefacientes. Aumenta também significativamente as responsabilidades administrativas por ofensas, ao abrigo dos Artigos 172-10 e 172-20 do mesmo código, elevando as multas e as penas de prisão.
Comando vai ganhar balanço para fazer chantagem e punir os militares
A nova legislação pretende harmonizar e endurecer as sanções disciplinares no exército ucraniano. A desobediência será punida com cinco a oito anos de prisão, contra os dois a sete atuais; deserção ou falta de comparência ao serviço sem justificação passa para 10 anos, enquanto as ameaças a superiores hierárquicos, consumo de álcool ou questionar ordens também terão penas agravadas.
"O comando vai ganhar balanço para fazer chantagem e punir os militares com prisão por qualquer crítica, ainda que tomem decisões incompetentes e baseadas em má gestão de combate", escreve a autora da petição, Tetiana Kostohryzenko.
"Não posso concordar plenamente com tal afirmação, mas, na prática, tudo é possível", comentou Yevhen Vorobiov, advogado da "Human Rights Platform", uma Organização Não-Governamental fundada em 2021. "Quem se recusar a cumprir uma ordem ou exigência criminalmente ilegal não está sujeito a responsabilidade criminal", acrescentou, em declarações à revista ucraniana "Rubrika". Sublinha, no entanto, que mesmo uma ordem sem sentido tem de ser cumprida se estiver de acordo com a legislação e os parâmetros de combate - equipamento, munições disponíveis e número de homens, por exemplo.
Soldados, advogados de direitos humanos e organizações independentes condenam a Lei 8271. "Vai ter consequências negativas na proteção de militares e vai reduzir a motivação para o serviço militar", argumenta, em comunicado, a Organização Não-Governamental Coligação de Reformas para o Acordo de Reanimação. "Isto pode acarretar riscos para proteção dos direitos humanos e da defesa da capacidade do Estado", argumenta aquela organização, citada pelo jornal norte-americano "Politico".
O ex-diretor do Departamento de Investigações Especiais, o oficial do exército Serhii Horbatiuk, sublinha que a adoção da lei 8271 "contraria a Constituição" da Ucrânia. "Viola grosseiramente os direitos do pessoal militar ao agir unicamente com base no local de trabalho e no uniforme. Isso é um crime", disse, numa entrevista ao site "Censor.NET".
O Exército está assente na disciplina
A favor da legislação, Andrii Yusov, representante dos Serviços Secretos ucranianos, admitiu que Kiev "antecipa uma situação difícil" com o fim do degelo e a chegada da primavera. A Lei 8271 pretende reforçar o controlo das tropas quando se aproxima "uma fase muito ativa da guerra", esperando-se "operações intensas" em fevereiro e março, acrescentou, em declarações ao canal "Freedom".
Após um ano a combater um inimigo em maior número e, aparentemente, com mais armamento - ou, pelo menos, sem as dificuldades da dependência externa - a motivação entre os soldados ucranianos sofreu alguns impactos. As agruras da guerra, o inverno, a morte a cheirar nas trincheiras ou os ouvidos destemperados pelos obuses inimigos causaram ferimentos, muitas vezes fundos, na vontade de homens e mulheres que largaram as profissões da vida civil para se juntarem ao exército da Ucrânia.
"O Exército está assente na disciplina", argumenta o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas da Ucrânia, Valerii Zaluzhnyi, num vídeo publicado no Youtube em que defende o agravamento das punições. Como os casos de indisciplina são resolvidos nos tribunais, havia militares condenados a penas pesadas por crimes ligeiros, e vice-versa.
"Reconheço a existência de problemas que levam ao abandono arbitrário de posições? Sim", diz Zaluzhnyi no mesmo vídeo. "Estou a trabalhar para as eliminar? As operações bem-sucedidas no terreno dizem que sim", acrescenta o Chefe de Estado-Maior do Exército ucraniano na mesma comunicação pública.
A "deserção na frente de batalha" é o título de uma palestra de Valerii Markus, sargento-mor da 47.ª Brigada Independente de Assalto, colocada no Youtube, em janeiro. "Há pessoas na nossa brigada que não querem estar aqui", disse. "Juntaram-se pelas razões erradas, como o salário", exemplificou. "Depois acabam por querer fugir; começam uma revolta", ouve-se no referido vídeo.
"Às vezes o abandono da posições é a única forma de salvar as pessoas de uma morte sem sentido", comentou, ao "Politico", um oficial do exército que acaba de regressar da frente de batalha em Bakhmut , um dos pontos quentes do conflito durante este inverno. Sob a condição de anonimato, argumentou que muitas das questões de indisciplina radicam na tibieza do comando e na incompreensão de Kiev para as dificuldades de enfrentar um inimigo com muito mais efetivos, mais capaz de rodar a carne que alimenta o troar dos canhões. "Fadiga e trauma levam a distúrbios mentais, e trazem o caos, negligência e até mesmo a depravação na vida de um soldado", acrescentou.
Em situações de desespero, o medo de responsabilidades criminais não funciona
Eugenia Zakrevska, uma advogada de Direitos Humanos, alistou-se como voluntária e está ao serviço na 92.ª Brigada Mecanizada Independente Ivan Sirko. "Em situações de desespero e completa exaustão, o medo de responsabilidades criminais não funciona", alertou a advogada e militar.
Zakrevska argumenta que os soldados raramente abandonam as posições e continuam lutar mesmo quando estão em menor número e a suster baixas significativas. A advogada e militar diz que os ucranianos abandonam apenas em casos de desespero absoluto e diz que para prevenir as deserções os comandantes deveria fazer mais rotações das forças na frente de combate.
"Às vezes é melhor retirar de uma posição para proteger as pessoas, o que acontece em circunstâncias extenuantes. Com a nova Lei 8271, condições extenuantes não são consideradas", escreveu, no Twitter, Pavlo Vyshebaba, comandante de um dos ramos da 68.ª Brigada Independente de Caça.
"É verdade. Na minha opinião, esse é um problema da lei, uma vez que há circunstâncias diferentes na guerra. Acresce que não há distinção das condições em que a ofensa criminal é cometida. Estar na frente de batalha é uma coisa, na retaguarda é outra. Portanto, a ira militar contra o legislador sobre o art. 69 do Código Penal da Ucrânia é plenamente justificada
"O mais doloroso é a proibição da aplicação das disposições dos artigos 69.º e 75.º do Código Penal da Ucrânia para os artigos 403.º (desobediência a uma ordem), 405 (ameaça ou violência contra um superior), 407 (abandono voluntário de uma unidade militar), 408 (deserção), 429 (sair voluntariamente do campo de batalha ou recusar-se a atuar com uma arma) do Código Penal da Ucrânia. O artigo 69.º do Código Penal da Ucrânia prevê que, se o arguido tiver duas ou mais circunstâncias atenuantes o tribunal pode impor uma pena mais leve do que a lei", diz Yevhen Vorobiov. "O artigo 75.º do Código Penal da Ucrânia previa a possibilidade de sair em liberdade condicional", acrescenta aquele advogado da "Human Rights Platform".
Chefe de Estado-Maior pode ser rival de Zelensky nas presidenciais de 2024
Apesar de reconhecer as dificuldades da rotação na frente de batalha, devido à escassez de militares para combater, em comparação com os números superiores dos russos, que tinham um exército com cerca de um milhão de efetivos, mais dois milhões na reserva, Zakrevska lamenta a rigidez da posição do chefe de Estado maior do Exército Ucraniano. "É muito desmotivador. É um contraste tão grande com a liderança humana de Zaluzhnyi", acrescentou.
Segundo o jornal ucraniano "Kyiv Post", Zaluzhny mantém relações estreitas com os EUA, apesar da alegada admiração pelo fascista Stepan Bandera, é considerado como um potencial rival de Zelensky nas eleições presidenciais de 2024. Apesar de contestada e assinada por 34941 militares, dos 25 mil necessários para chegar ao gabinete do presidente, a petição não teve o efeito pretendido e a Lei 8271 foi aprovada a 2 de fevereiro. O veto de Zelensky minaria o apoio junto dos militares e até dos EUA para a reeleição, no próximo ano.