
O Vale dos Caídos foi construído entre 1940 e 1958, com recurso ao trabalho forçado de prisioneiros de guerra republicanos
Maria João Morais
Mais de 40 anos após o fim da ditadura franquista, o Governo de Pedro Sánchez prepara-se para enfrentar o grande tema pendente da democracia espanhola: exumar os restos mortais do ditador e alterar o significado do Vale dos Caídos. Medida histórica, que alguns acusam de reativar a retórica das "duas Espanhas".
Atravessado o longo túnel à entrada da basílica do Vale dos Caídos, o corrupio de visitantes denuncia o local onde se encontra o túmulo de Francisco Franco. Apesar de as fotografias no interior do templo serem proibidas, os flashes sucedem-se junto ao lugar onde o antigo "caudillo" foi enterrado, em 1975. Todos querem um retrato junto da lápide que repousa sobre os restos mortais do ditador, onde se acumulam flores.
Escavado na rocha, o austero complexo monumental do Vale dos Caídos continua hoje a homenagear os vencedores da guerra civil (1936-1939), deixando em evidência as fragilidades da democracia espanhola, que Sánchez tenta agora corrigir.
Apesar do sol a pique, a temperatura dos últimos dias de verão no vale de Cuelgamuros é amena. É aqui, a mais de 1400 metros de altitude e a cerca de 55 quilómetros de Madrid, que se ergue o gigantesco mausoléu que alberga os restos mortais de 33 mil vítimas da guerra civil, que descansam junto a Franco e ao fundador da Falange, José Antonio Primo de Rivera. A presidir o conjunto, uma imponente cruz de 150 metros, que se avista a quilómetros de distância.
"Não é possível numa democracia madura que Franco tenha um túmulo de Estado", disse a vice-presidente do Executivo, Carmen Calvo, ao justificar a iniciativa dos socialistas de proceder à exumação do "caudillo" com caráter de urgência. Segundo o decreto-lei aprovado no Congresso de Deputados na passada quinta-feira, o Vale dos Caídos será transformado em "lugar de recordação e homenagem às vítimas" da guerra civil.
Desde que se soube que o Governo se prepara para desenterrar Franco, o número de visitantes não parou de aumentar. Movidos por respeito ou apenas por curiosidade, o certo é que as visitas ao monumento dispararam 76% no mês passado, superando as 60 mil pessoas.
"Duas Espanhas"
Andrés Sanz, engenheiro de obras públicas, fez questão de tirar a fotografia da praxe junto ao túmulo do homem que liderou Espanha com braço de ferro durante quase 40 anos. "É uma figura polémica, mas não deixa de ser uma personagem histórica" justifica. Por isso, a exumação do ditador não lhe parece uma prioridade. "O país tem problemas mais graves, que deveriam ser tratados antes de se dedicar tempo, esforço e dinheiro a algo que já faz parte da história", diz, ao JN.
Desde que foi anunciada, a iniciativa de Sánchez tem enfrentado duros ataques por parte de setores da Direita, a começar pela própria Fundação Francisco Franco, que o Governo quer ilegalizar. Em declarações enviadas por email ao JN, o presidente da entidade, Juan Chicharro, não hesita em classificar a trasladação de "ato de pura vingança", argumentando que "não se pode exumar um cadáver sem a autorização da família". Por ter sido aplicada através de um decreto-lei, considera a medida "ditatorial", acusando-a de "não cumprir os requisitos previstos na Constituição".
Local de culto para a Extrema-Direita, o Vale dos Caídos tem sido defendido por grupos assumidamente franquistas, como o Movimento por Espanha, encabeçado por Pilar Gutiérrez. "No vale não se toca", lê-se nas costas da t-shirt que enverga à entrada do monumento. Filha de um ex-ministro de Franco, tornou-se numa das maiores críticas do "decretazo de Sánchez". Crente de que ainda é possível impedir a exumação, acusa a iniciativa do Governo de "reabrir feridas" e de "reavivar a retórica das duas Espanhas".
Contudo, apesar dos ataques de alguns setores e da resistência da família do ditador, a trasladação parece imparável. As "ameaças não vão mudar nada", afirmou a ministra porta-voz, Isabel Caláa.
Junto das associações que agrupam familiares de vítimas do franquismo, a medida foi bem recebida e peca apenas por tardia. "Não queremos vingança, queremos justiça", explica Arturo Peinado, presidente da associação Fórum pela Memória, cujo avô foi fuzilado pelas forças franquistas pouco depois de finalizada a guerra civil.
Satisfeito com o anúncio da exumação de Franco, só receia que se trate de "um avanço pontual", que deixe de lado outras medidas que considera indispensáveis, como a transformação do Vale dos Caídos "num lugar de memória dedicado às vítimas" ou a "anulação das sentenças franquistas".
Perguntas e respostas
Que partidos apoiam o decreto-lei?
A exumação do general Franco foi aprovada na passada quinta-feira, no Parlamento, com os votos favoráveis do Partido Socialista, Unidos Podemos e dos grupos nacionalistas catalães e bascos.
Qual a postura da oposição?
Apesar de classificar a medida de "cortina de fumo", destinada a encobrir a "incapacidade" do Executivo - nas palavras do líder, Pablo Casado - o Partido Popular limitou-se a abster-se durante a votação, tal como como o Ciudadanos, de Albert Rivera
Quando será realizada a exumação?
O Governo espera que o procedimento possa ser feito antes do final do ano, tendo dado à família 15 dias para se encarregar dos restos mortais do ditador. Caso esta decline, será o Executivo a tomar a decisão.
Qual a posição da família Franco?
Os sete netos do "caudillo" têm-se mostrado contrários à exumação e, por isso, pediram ao Partido Popular para apresentar um recurso perante o Tribunal Constitucional contra o decreto-lei.
Vozes dos familiares pedem justiça para os desaparecidos
De há oito anos a esta parte, em todas as quintas-feiras, um protesto reúne parentes de vítimas da repressão
Albino Calvo nasceu em 1936, poucas semanas antes do golpe de Estado contra o Governo da Segunda República, que acabaria por mergulhar o país no conflito bélico que ainda hoje gera profundas divisões em Espanha. O pai, Jesús Calvo Vera, alistou-se como voluntário no Exército da República para "lutar contra os sublevados", liderados pelo general Francisco Franco.
Natural de Salmerón, em Guadalajara, sobreviveu à guerra civil, mas não ao pós-guerra. Acusado de "revolucionário", Jesús foi fuzilado em 1940, pelas forças franquistas, quando contava apenas 27 anos de idade. Quanto a Albino, que agora relata os acontecimentos com a voz entrecortada e o olhar inundado, não alcançava sequer os quatro anos.
Em todas as quintas-feiras, junta-se ao protesto que há oito anos reúne semanalmente familiares de vítimas da repressão franquista em plena Puerta del Sol, em Madrid, para exigir justiça às autoridades espanholas.
Apesar de baseado na legislação repressiva de Franco, o julgamento que condenou o pai de Albino é ainda hoje considerado legal, uma vez que as sentenças emanadas pelos tribunais ditatoriais nunca foram anuladas. Quarenta anos depois de implantada a democracia em Espanha, mais de 100 mil vítimas da violência do regime de Franco permanecem desaparecidas em valas comuns clandestinas um pouco por todo o país.
É por isso que Arturo Peinado, presidente do Fórum pela Memória, insiste na urgência de retomar a "exumação dos milhares de vítimas que continuam enterradas em valas comuns". A medida, lançada pela Lei de Memória Histórica de 2007, foi suspensa na prática pelo Governo do Partido Popular, que a deixou sem financiamento.
A própria ONU, recorda o historiador, já mostrou preocupação pelas falhas das autoridades espanholas em matéria de investigação de violações de direitos humanos.
Quando lhe dizem que as medidas de caráter histórico vão reabrir feridas, Arturo explica que, na verdade, estas nunca se fecharam. "Enquanto uma pessoa tiver um pai ou um avô numa vala comum, como se fecha essa ferida?", questiona.
* correspondente em Madrid
