Com um dos maiores níveis de inflação de sempre, o Governo venezuelano prepara uma reconversão monetária que não convence: retira cinco zeros ao bolívar e avança com o petro.
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A economia venezuelana é um barco à deriva onde um café com leite chegou aos dois milhões de bolívares, 1 200 000 % mais do que em abril. Onde o metro, a 4 bolívares, teve que se tornar gratuito. Onde numa carteira não cabe um magro ordenado.
O presidente Nicolás Maduro encontrou a solução: ancorar a economia a uma moeda virtual desacreditada - o petro -, colocar o banco central do país a explorar um bloco de petróleo para aumentar reservas internacionais e pôr os venezuelanos a fazer difíceis contas de cabeça a partir de 20 de agosto, retirando cinco zeros ao bolívar forte e colocando em circulação um novo bolívar soberano, que reduz 100 mil bolívares atuais para 1.
O criptomistério
A divisa do país vai passar a orientar-se pelo petro, a criptomoeda soberana lançada este ano pelo preço de um barril de petróleo para financiar Caracas. Mas os números do petro são também eles crípticos. "Ninguém sabe como funciona. Não existe, não tem preço, não há transações de petros até hoje. É impossível tentar saber quanto custará um petro", diz Alejandro Grisanti, diretor da consultora venezuelana Ecoanalitica.
"Quando se tenta ancorar uma moeda a algo que não existe, então não se tem qualquer âncora e continua-se à deriva. O bolívar vai continuar à deriva, porque Maduro não anunciou nada para que o Governo reduza taxa de inflação", acredita.
O nível de inflação deverá atingir este ano os recordes históricos da Alemanha do pós Guerra e do Zimbabué de Robert Mugabe, no início deste milénio, diz o Fundo Monetário Internacional, que há mais de uma década deixou de ter relações com a Venezuela. Na sua última intervenção, em 1996, os preços cresciam 54% no país. Este ano, a subida será de um milhão por cento.
A Venezuela vive há oito anos uma crise económica e humanitária na qual todos os números são uma anomalia. A taxa de pobreza está nos 87% e a população perde uma média de 11 kg por ano, segundo dados das principais universidades de Caracas. Não há emprego, muitos saem dos país. Para os que ficam e podem pagar, comprar um quilo de feijão nos mercados formais custa agora dois terços de salário. Na próxima semana, será ainda mais caro.
Por enquanto, ainda há economia, um sistema de pagamentos e de preços, mesmo que difíceis de encontrar e acompanhar. O metro de Caracas teve que passar a ser gratuito, porque é impossível cobrar quatro bolívares por bilhete. Além de que já não há bilhetes.
O país está rapidamente a perder todos os pontos de apoio. "Eliminar cinco zeros o mais rapidamente possível ajudará a conservar o sistema de pagamentos por mais alguns meses, talvez por um ano", estima Grisanti. Mas não será a solução.
Um Governo isolado
"A âncora mais importante seria uma âncora fiscal, seria um governo que percebesse que não pode gastar muito acima das receitas", afirma o economista. "Nada disto é possível com o Governo de Maduro. Ele não é reconhecido pela comunidade internacional, não pode ir ao FMI procurar recursos para estabilizar a economia e para financiar o Governo num período de transição. Estou muito pessimista".
Com uma dívida externa estimada pela Moody"s em 65,2 mil milhões de dólares e falhas de pagamentos soberanos e da petrolífera estatal, o rating da Venezuela está hoje no fundo do lixo, sem qualquer perspetiva de melhora ou de ajuda externa. E a produção de petróleo também poderá continuar a cair, agravando ainda mais o estado do país.
O Café Con Leche Index que ajuda a fazer contas
As previsões do Fundo Monetário Internacional (FMI) são tão claras quanto impenetráveis para o comum dos mortais: a Venezuela vai fechar 2018 com um produto interno bruto emagrecido em 18% e a inflação em 1 000 000 %. Os números são indizíveis e o sistema monetário instalado baralha ainda mais os dados: há várias taxas de câmbio, incluindo a do mercado negro, e é impossível saber com quantos bolívares se constrói um euro.
A agência financeira Bloomberg resolveu a charada: calcula a inflação pela multiplicação da fatura de... um café com leite. Inventou o index em 2016 e com ele parece não só acertar nas previsões do FMI, como passar-lhes a perna. E resolver o problema da falta de estatísticas oficiais, no que a estas contas diz respeito. Chama-se "Bloomberg Cafe Con Leche Index".
Um ano a pique
Há um ano, um café com leite numa padaria de Caracas custava 2300 bolívares. Em abril atingia 190 mil bolívares. Em junho passou o milhão. Na semana passada, atingiu 1,4 milhões. Na quinta-feira, quando o presidente Maduro anunciou para 20 de agosto a reconversão da moeda e a sua redução em cinco zeros, batia os dois milhões. Ou seja, calcula a Bloomberg, um aumento recente cuja taxa anual seria de 1 227 638%.À falta de fiabilidade da conversão do bolívar - que muitos países nem sequer contemplam - ficam aqui alguns números, ainda com base na Bloomberg. A maior nota atual - 100 mil bolívares - vale menos de um cêntimo de dólar (0,008 euros). Nas ruas, o dólar custa mais de dois milhões de bolívares. Portanto, um café com leite ainda não é um euro...