No ano passado, 19 crianças adotadas correram perigo na nova família - negligência ou maus-tratos - e voltaram a entrar no sistema de acolhimento. O mesmo aconteceu a cinco crianças em pré-adoção. No total, no ano passado, havia nas instituições 53 crianças adotadas ou pré-adotadas.
Corpo do artigo
São duplamente vitimizadas: pela família biológica e pela adotante, mostram os dados do relatório CASA, de Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens. O relatório indica que estas "voltaram a ser vítimas de situações de perigo" no seio da família adotiva. Perigo suficiente para justificar uma "nova separação temporária" e uma intervenção pelos técnicos, para definir outro projeto de vida. Na maioria dos casos, disse o Instituto de Segurança Social (ISS), esteve em causa a incapacidade dos pais adotivos de lidar com os desafios durante o período de pré-adoção, como a "aceitação da história de vida e as características da criança, compreensão e aceitação do tempo necessário para que se adapte ao novo contexto familiar".
Questionado sobre que tipo de perigo corriam os menores tirados aos pais, o ISS disse apenas que se tratou de progenitores sem competências e comportamentos adequados, que punham em causa o bem-estar da criança. Nesses casos, é interrompido o período de pré-adoção, por iniciativa dos próprios pais ou das equipas técnicas, com validação por um tribunal. Note-se que só se referiu a menores em fase de pré-adoção, não aos já adotados.
Quanto à triagem dos candidatos, para garantir que a criança é entregue a famílias idóneas, é feita mediante a apresentação de documentos (registo criminal, certidão de nascimento de filhos, se houver, e atestado médico). É também feita uma avaliação psicossocial para aferir da sua personalidade e capacidade, as motivações para adotar ou as características da família.
As crianças e pais são acompanhados pelo ISS durante o processo, mas depois de concluída a adoção são, por norma, entregues a si próprias (ler página seguinte).
Confronto do sonho com a realidade
Os pedopsiquiatras alertam para as consequências desta dupla rejeição - pelos pais biológicos e os adotivos - para o desenvolvimento emocional das crianças. A rejeição destes menores é "muito grave", já que se trata de "crianças vulneráveis, com falhas no desenvolvimento emocional e grandes carências de afetos", cuja experiência passada as leva a "desenvolver defesas e inseguranças nas relações emocionais", assegura Pedro Monteiro. Uma adoção falhada tem, por isso, "consequências graves" para o desenvolvimento da sua personalidade, afirmou.
Manuel Coutinho, do SOS Criança, reforça a ideia de que esta "revitimização" é ainda mais grave do que a original, por ser perpetrada pela família que a devia resgatar do abandono, e usa palavras como "angústia" ou "desespero" para descrever as consequências. Por isso, a adoção traz uma "particular responsabilidade" à nova família. "Não se pode falhar", disse.
A adaptação, contudo, pode não ser fácil, sobretudo quando a realidade não corresponde ao filho idealizado, dizem os pedopsiquiatras. A convivência diária com uma criança que se conhece mal pode trazer um grau de conflitualidade para o qual a família não está preparada.
A tendência, diz Pedro Monteiro, é culpabilizar os pais adotantes, mas essa é a via fácil. Melhor será analisar os procedimentos de avaliação da sua capacidade para acolher crianças porventura mais difíceis, no que diz respeito à sua tolerância à frustração ou tendência para ter comportamentos de oposição, advoga. Só assim será possível saber se algumas situações podiam ter sido prevenidas.
Manuel Coutinho assegura que o processo de adoção "é muito complexo e as famílias são sujeitas a uma avaliação rigorosa" e destaca que a maioria das adoções é bem-sucedida. Mas concorda que os procedimentos "podem sempre ser melhorados".
"Há lacunas no sistema que importa corrigir"
O sistema de adoção, tal como está estruturado, tem lacunas que devem ser corrigidas, diz Maria João Matos, presidente da Meninos do Mundo, uma instituição que trabalha na área da adoção e que integra pais adotivos ou candidatos à adoção. Sobre os números da Segurança Social, alerta que é preciso saber em maior pormenor o que aconteceu, antes de fazer juízos de valor.
Entre as falhas apontadas, está o acompanhamento das famílias após a adoção. "A lei prevê um acompanhamento por técnicos até aos 18 ou 21 anos, mas a pedido das famílias", afirmou Maria João Matos. Contudo, desconhece se esta informação é dada aos futuros pais, ou em que condições é dada. Nem conhece alguma família quem tenha sido acompanhada depois de decretada a adoção.
É certo que a medida só está em vigor desde 2015, mas a falta de recursos nas equipas técnicas da Segurança Social leva a suspeitar que poucos sejam os serviços de acompanhamento já estruturados.
Esta é uma segunda lacuna que importaria colmatar. "Todos sabemos que os recursos são poucos", até para a fase de seleção dos candidatos a pais adotivos. "Não ponho em causa a competência técnica dos profissionais, mas ponho em causa as condições laborais, como a carga de trabalho", afiançou. São precisos mais técnicos, especializados, quer na seleção de candidatos, quer nas equipas que acompanham as crianças no acolhimento, para as preparar para a vida numa nova família, defendeu. "Quanto mais velhas forem as crianças, mais importante é a sua preparação para adoção, que é essencial para o sucesso", disse.
Quanto aos dados do CASA, salientou que só se podem tirar conclusões sabendo a idade da criança ou jovem e há quanto tempo tinha sido decretada a adoção, bem como se foram retiradas à força ou por acordo, ou por iniciativa do adotado. "Sem estes dados, a realidade pode estar enviesada", disse.
Procedimentos da adoção
1 Quem pode adotar?
Podem ser pais adotivos casais casados (sejam ou não do mesmo sexo) ou a viver em união de facto há mais de quatro anos, se tiverem mais de 25 anos. Ou uma pessoa singular, com mais de 30 anos (ou de 25 anos, se o adotado for filho do cônjuge). O limite é definido nos 60 anos de idade, salvo exceções. Depois, a Segurança Social segue critérios como a personalidade do candidatos, as motivações, a situação familiar e económica, a saúde e a idoneidade para criar a criança.
2 E ser adotado?
Só uma pequena parte das crianças institucionalizadas é adotável, o que apenas acontece quando os técnicos concluem que não existem laços afetivos com as famílias biológicas, ou que são demasiado ténues para serem viáveis. Como diz Eduardo Sá, basta que um pai ou mãe telefonem no Natal, para que se possa considerar a hipótese de uma reintegração na família biológica e não se inscrever a criança na lista da adoção.
3 Que formações há?
Estão previstas três. A primeira é dada no arranque do processo e é sobretudo informativa, sobre os objetivos, requisitos e processo da adoção. São também identificadas as capacidades necessárias para adotar. Se se formalizar a candidatura, há uma segunda formação, na qual é definido o projeto de adoção, se reflete sobre as motivações para a adoção e o impacto que a história de vida da criança terá no adulto. São ainda abordadas as capacidades dos adultos para responder às necessidades das crianças. Se a candidatura for aprovada, a última formação lida com áreas como a vinculação afetiva ou como lidar com comportamentos e situações particulares, entre outras.
4 Qual o primeiro passo a dar?
Contactar o Centro Distrital de Segurança Social, a Santa Casa de Lisboa (se viver na capital) ou o Instituto da Segurança Social dos Açores e da Madeira, caso more nas ilhas.