Ao contrário do que queria Salazar, muitas mulheres portuguesas não eram donas de casa: trabalhavam, estudavam e ambicionavam um país sem as amarras da ditadura. O 25 de Abril de 1974 definiu-as, mesmo que a experiência fosse diferente para quase todas.
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Guida Vieira estava a regressar da escola à noite, no Funchal, quando o cunhado lhe disse, durante a viagem de carro até casa, que “algo estava para acontecer”. Maria Emília Brederode Santos, a viver em Genebra, na Suíça, recebeu um telefonema “às seis ou sete da manhã” do padre Joaquim Pinto de Andrade, que esteve preso no Aljube com o seu marido. Maria José Magalhães soube da Revolução no liceu de Castelo Branco. Luísa d’Espiney foi acordada “aos gritos” pelo pai, que seguiu para o Forte de Peniche, onde tinha um irmão preso.
O 25 de Abril de 1974 chegou até estas quatro mulheres em idades, locais e contextos de vida diferentes. Para algumas, foi o início da luta pela dignificação dos seus postos de trabalho e dos seus corpos. Para outras, significou a libertação das amarras da ditadura, que causou dor e saudade nas famílias, fosse por causa da prisão ou do exílio. Para todas, a Revolução dos Cravos significou liberdade, de dizer, fazer e vestir. Tornar um país cinzento e revesti-lo de cores e, sobretudo, de direitos.
Há 50 anos, Guida Vieira era operária numa empresa de bordados e tapeçaria da Madeira. Tinha 24 anos quando se deu o golpe de Estado, organizado pelo Movimento das Forças Armadas, que haveria de pôr fim a 48 anos de ditadura. Naquela madrugada, ouviu o comunicado dos militares através de um telefone fixo ligado à rádio. “No dia seguinte, fui trabalhar e estava um alvoroço na fábrica. Mas, a nível institucional estava tudo parado”, diz. Mais tarde, soube que o presidente da República deposto, Américo Tomás, tinha-se refugiado no Palácio de São Lourenço, no Funchal.
A histórica sindicalista da Madeira, hoje com 74 anos, assume que era uma “criança rebelde”, a pobreza revoltava-a e comentava frequentemente em casa que “não gostava das conversas de Marcello Caetano”. O então chefe de Governo tinha um programa televisivo chamado “Conversa em Família”, transmitido na RTP. O pai proibiu-a de tecer aquele tipo de comentários com outras pessoas. “Não me explicava o porquê e eu não tinha, na altura, consciência política”, conta ao JN. Mas veio o 25 de Abril e muito mudou no país e na vida de Guida Vieira.
A trabalhar desde muito nova, a partir de casa e depois numa fábrica, na área das tapeçarias e dos bordados, Guida Vieira conta que as “mulheres madeirenses eram muito exploradas”. Quase todas sabiam bordar e pouco recebiam pelo seu trabalho. As donas de casa tratavam dos filhos e mantinham a profissão dentro de quatro paredes. Havia quem precisasse de mais dinheiro e procurasse trabalho em empresas. Porém, tal ousadia acarretava custos: “Éramos muito mal vistas. Quase consideradas como prostitutas”, explica. No campo, as agricultoras tidas como chefes de família, porque os maridos estavam emigrados, eram “mais emancipadas”.
Homens cercados por mulheres
A historiadora Irene Flunser Pimentel explica que, embora o ideal salazarista dos anos 30 remetesse as mulheres para dentro de casa, sobretudo para cuidar dos filhos, “isso nunca aconteceu na realidade”. “Os salários eram tão baixos que o homem e a mulher tinham de trabalhar. E até as crianças”, afirma. Entre 1948 e 1950, a jornalista Maria Lamas publicou a obra “Mulheres do Meu País”, que mostrou que, afinal, muitas portuguesas trabalhavam e não eram donas de casa, a imagem que o regime de António de Oliveira Salazar procurava pintar da condição feminina.
A revolta era “tão grande”, recorda Guida Vieira, que após o 25 de Abril as bordadeiras da Madeira lutaram para serem reconhecidas como “trabalhadoras”. Pelo país e também na ilha, viam tantos outros operários a tomar as rédeas dos seus próprios destinos. Estava na altura de elas fazerem o mesmo. Existia um sindicato para os empresários dos bordados, que em pouco servia os interesses das mulheres que davam corpo e alma à profissão, conta ao JN. “Organizamos uma comissão sobretudo de jovens operárias”, recorda. O objetivo era convocar uma assembleia-geral para marcar eleições livres para o sindicato. Guida haveria de ser eleita presidente do Sindicato das Bordadeiras da Madeira. Um cargo que ocupou durante 26 anos.
Não esquece, porém, o dia em que os empresários dos bordados chamaram as Forças Armadas, porque ficaram cercados por centenas de mulheres. Talvez, “mais de mil mulheres”, diz a sindicalista. Enquanto os patrões eram escoltados por militares, as bordadeiras entoavam versos do cantor de intervenção Tino Flores: “Os patrões são inimigos do povo trabalhador” foi uma das frases cantadas.
As mulheres portuguesas não tinham o mesmo percurso traçado à nascença. Os problemas de umas não eram os das outras. Maria Emília Brederode Santos cedo percebeu que haveria de ter uma vida diferente das meninas com quem brincava no pátio. “Na quarta classe, era indiscutível para a minha família, eu continuava a estudar. Mas elas não. Iam trabalhar ou seguiam para as escolas industriais”, conta a professora de 82 anos. Além da consciência social, já era muito percetível para a adolescente que a ditadura era “muito sufocante” no campo político. Graças à família, desde sempre na oposição ao regime do Estado Novo, a menina nascida em Campo de Ourique inspirava à mudança do país e quis conhecer outras culturas e países.
Quarenta raparigas numa cela
Ainda adolescente, estudou nos Estados Unidos, uma raridade para a época. Mais tarde, já na universidade, haveria de se envolver nos protestos do movimento estudantil do início dos anos 60. Apesar de incentivada pelo marido, José Medeiros Ferreira, a intervir mais nos comícios e plenários de estudantes, mantinha-se regularmente nos bastidores com uma postura mais discreta. “As raparigas não falavam tanto em público”, admite. Embora não estivessem proibidas de o fazer, Maria Emília Brederode Santos diz que os “rapazes eram mais incitados a falar” desde pequenos. A antiga presidente do Conselho Nacional de Educação afirma, contudo, que havia duas raparigas na direção da associação de estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Seriam, aponta ao JN, a timidez e o receio a afastá-las da frente dos palcos. “Não refleti muito sobre isso”.
O percurso de Maria Emília não é, porém, muito diferente de outras jovens raparigas que cresceram e se tornaram mulheres durante o Estado Novo. “Nos anos 60, as famílias queriam que as filhas estudassem e que a mobilidade social existisse”, conta Irene Flunser Pimentel. A historiadora que, na madrugada do 25 de Abril esteve a colar cartazes contra a Guerra Colonial, adianta que a emigração dos homens e os conflitos pela independência em África colocaram mais mulheres no mercado de trabalho em Portugal. “Era muito necessário”, refere. Nem todas as profissões estavam acessíveis às mulheres: não podiam ser juízas ou diplomatas, mesmo que estudassem para tal. Aos 32 anos, a morar em Genebra por causa do exílio do marido, Maria Emília Brederode Santos soube por telefone da Revolução dos Cravos. Aquelas primeiras horas da manhã de 25 de Abril de 1974 só podem ser descritas como uma “alegria enorme”.
Ainda antes da democracia florescer em Portugal, a 16 de dezembro de 1973, Luísa d’Espiney foi detida. Tinha 16 anos. Ao todo, na mesma cela do Governo Civil de Lisboa, estavam 40 raparigas. O movimento associativo do ensino secundário não era permitido. Na altura, a ainda adolescente sabia bem quais eram as consequências de ousar pensar diferente da ditadura. A família, conhecida resistente antifascista, teve vários elementos presos, alguns ao mesmo tempo, incluindo o pai de Luísa, Sérgio d’Espiney, e os tios. E se em criança parecia “confuso” ter o pai preso por “razões políticas” e não por ser “ladrão”, na juventude a escolha foi natural. Estava do lado da contestação.
Nem sempre os tempos no liceu foram fáceis, embora a maioria dos estabelecimentos dos finais dos anos 60 e do início da década 70 tivessem movimentos associativos. Alguns, mais ou menos, disfarçados e discretos. Luísa não concordava com as posturas dos professores e não levava desaforos para casa. “Quando fui para o Liceu Filipa de Lencastre, tive de assinar um documento em como me comprometia a usar as saias abaixo do joelho. Era obrigatório na inscrição”, recorda, hoje com 66 anos. “Fartei-me de rir, mas assinei”, acrescenta. A moral dos bons costumes ainda aprisionava determinados comportamentos das mulheres, mas Luísa d’Espiney revela que a partir de 1973 já “havia alguma flexibilidade”. As aulas de “lavores femininos” mantinham-se, no entanto o país já estava preparado para mudar. Já não era o mesmo que na década de 60.
Rever o Código Civil
Aos 14 anos, Maria José Magalhães afirma que a rigidez da ditadura nos modos de vestir das jovens adolescentes era anedótica. A estudar no Liceu de Castelo Branco, lembra-se de haver “guardiãs da moralidade” na escola, que mediam as saias e cortavam as franjas compridas às raparigas. “Eram coisas tão ridículas. Não se falava de menstruação e as mulheres [adultas] usavam roupas largas para não mostrarem que estavam grávidas”, conta. Não raras vezes, a hoje professora universitária, de 64 anos, subia as saias e colocava os cabelos à frente do rosto quando era adolescente. A ideia era desconcertar a guardiã e “as suas capangas”. Ainda recorda, entre risos, a imagem do reitor a apanhar folhas brancas do chão, provavelmente receoso de que ali estivessem ideias subversivas. Era proibida a distribuição de panfletos.
A Revolução veio e trouxe mudanças para as mulheres, mas nem tudo foi imediato. “Começaram de cima para baixo”, diz a historiadora Irene Flunser Pimentel, ancorado nas “mulheres das elites”, que trataram de estudar o Código Civil e de propor a revisão deste documento. Nos anos seguintes, haveria de chegar o voto universal, o que incluía todas as mulheres, foi eliminada a expressão “chefe de família” e cada uma passava a poder escolher a profissão que bem entendesse e a gerir os seus próprios bens. “Chegamos ao final dos anos 80 e ainda tínhamos mulheres operárias que não podiam ir mais do que uma vez à casa de banho”, lamenta Maria José Magalhães, atual vice-presidente da UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta.
Para Irene Flunser Pimentel, o que continua a ser “mais lento é a mudança de mentalidades”, como os papéis de género no seio familiar e a desigualdade salarial entre homens e mulheres. A historiadora recorda ainda a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, alcançada em Portugal por um referendo em 2007, que mostra quão tardias podem ser as mudanças. Um outro escrutínio sobre o aborto tinha sido realizado em 1998, no qual ganhou o “não” à despenalização.
Apesar dos direitos conquistados para e pelas mulheres, “nada está adquirido”, diz a também professora universitária. “Haverá sempre grupos na sociedade que querem recuos. (…) Essa coisa de dar um estatuto de dona de casa é completamente absurda. Vai-se reduzir a mulher àquilo”, acrescenta, em referência à proposta do Movimento Ação Ética. “Porque é que esse estatuto não é também para os homens?”, interroga.
Abril de 1974 abriu as portas a todos, mas teve um impacto significativo nas mulheres. Para a historiadora, que passou de carro à noite pelo Rádio Clube Português, já ocupado pelos militares, na madrugada do dia 25, o dever é garantir que não há recuos para ninguém. Basta apenas recordar o que escreveu a escritora Maria Velho da Costa, em 1975, “elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes”.