Efeitos da cultura do cancelamento fazem ressurgir fantasmas da censura. Tentativas de condicionamento dividem a opinião dos especialistas.
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Editores e jornalistas suspensos por veicularem artigos controversos, livros reescritos para não ferirem suscetibilidades, influenciadores perseguidos por opiniões controversas - a denominada cultura do cancelamento tem muitas faces, mas em nenhuma encontramos elementos que permitam responder a uma questão simples: estaremos no advento de uma nova censura?
Da política à criação artística, da investigação académica à Comunicação Social, o pretenso despertar que está por detrás do movimento woke deu origem nos últimos anos a uma intensa batalha verbal (e não só) entre os que defendem uma correção dessas desigualdades históricas e os que apontam para os seus excessos.
Sem atingir ainda os níveis de outros países, o debate público em Portugal sobre o tema parece instalado em definitivo, com a política a centrar as discussões mais acaloradas, a que não será alheia a recente subida expressiva da extrema-direita.
Deputado da Iniciativa Liberal, Carlos Guimarães Pinto acredita que muitas das avaliações feitas sobre o assunto partem de um erro de julgamento. “Confunde-se o exercício da crítica com cancelamento”, aponta o dirigente, que assume a dificuldade em apelidar de censura este fenómeno, preferindo falar antes em “tentativa de condicionamento”.
O problema nem sequer é recente, por muita visibilidade que tenha ganho nos últimos anos. O escritor Hugo Gonçalves ainda se recorda de como já foi forçado a retirar piadas de um guião ou o modo como perdeu “uma crónica num jornal por escrever um texto crítico do Governo angolano”.
“O que mudou foi a desproporção entre o problema real - que existe - e o ruído provocado por políticos demagogos - autovitimização é uma tática política - ativistas de sofá, militantes do ultraje, inquisidores das redes sociais”, advoga o autor de “Deus, pátria, família”.
Fugir da “algazarra”
O ruído de que fala Hugo Gonçalves também é destacado por João Teixeira Lopes. O sociólogo aponta “a polarização exacerbada do tribalismo” como um potencial risco de censura. Mas, tal como os restantes interlocutores, também o professor catedrático reconhece o uso abusivo da palavra “censura”, quando em causa podem estar só visões distintas. “Convém separar a cultura de cancelamento de reações políticas legítimas a discursos excludentes”, observa.
Se estas polémicas são quase sempre estéreis e passageiras - “o efervescente de hoje é o esquecimento de amanhã”, diz Teixeira Lopes -, há uma dimensão deste fenómeno que assume contornos mais preocupantes, quando o visado opta pela autocensura para evitar celeumas. No campo da criação, diz Hugo Gonçalves, o caminho a seguir só pode ser um: fazer o seu trabalho “protegido da algazarra constante nos media e nas redes sociais” e “sendo fiel àquilo a que se propõe sem pensar no que vão dizer do resultado final”.