Pessoas que não tiram os olhos do ecrã enquanto caminham na cidade são um perigo para elas próprias quando atravessam ruas e avenidas. Semáforos no chão, e com temporizadores, ou passadeiras 3D são novas soluções para travar o alto número de atropelamentos causado pelas distrações.
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A tecnologia reinventa-se para se proteger de outras tecnologias. Com as novas gerações cada vez mais dependentes dos smartphones, há quem não tire os olhos do ecrã, independentemente do local por onde caminha. Seja para ler ou mandar mensagens, consultar as redes sociais, ou apenas para ouvir música, tal como acontece com os automobilistas, o uso do telemóvel favorece a distração, o que, no caso dos peões, pode levar a atropelamentos com consequências graves. Para tentar travar este fenómeno - já conhecido em todo o Mundo como "zombies dos telemóveis" - as cidades estão a recorrer a soluções tecnológicas, que passam por instalação de semáforos no chão, junto às linhas de atravessamento, temporizadores na sinalização vertical, passadeiras 3D e até faixas próprias para viciados em smartphones.
Estas opções não são, no entanto, consensuais. Especialistas em mobilidade ouvidos pelo JN Urbano sustentam que a prioridade deve ser limitar a velocidade dos automóveis nas zonas residenciais e apostar no desenho de cidades mais viradas para os peões e menos para os automóveis.
Amadora estreia linhas luminosas no chão
A "guerra" aos "zombies" dos telemóveis começou na China, com a construção de faixas próprias para quem caminha de olhos grudados no ecrã. Seguiram-se outras cidades do Oriente e a moda chegou aos Estados Unidos e à Europa. Mas era preciso mais e surgiram as linhas luminosas horizontais junto às passadeiras, que apresentam a mesma cor que o respetivo semáforo, de modo a que, quem caminha de olhos postos no chão, tenha sempre noção se o sinal está verde ou vermelho. Em Portugal, a Amadora foi a primeira cidade a apostar neste modelo.
A verdade é que os números, a nível nacional, continuam a ser alarmantes. Em 2018, houve 5176 atropelamentos, de que resultaram 149 mortes. Comparada com os últimos anos, segundo dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, a taxa de mortalidade neste caso cresceu 8% relativamente a 2014 (138 óbitos) e 25% comparada a 2016 (119). Nas principais cidades, o panorama também não é animador. Só em Lisboa, no último ano, houve 652 atropelamentos, contra 607 em 2014 (+ 7%), de que resultaram 20 mortos, um aumento de 122% relativamente a 2014, em que houve nove óbitos.
Mesmo tendo em conta as diferenças de população, a capital supera largamente as outras cidades mais importantes do país. No ano passado, no Porto, houve 260 atropelamentos e quatro mortos e em Braga 122 acidentes e duas vítimas mortais.
As pessoas perdem a noção do que as rodeia. Já vi alguns, com o sinal vermelho para peões, pararem à minha frente na faixa, para mandarem uma mensagem
Desta realidade terá partido o avanço da Amadora para os sinais luminosos nos passeios. É evidente que nem todos os atropelamentos são por culpa dos "zombies", mas, para quem anda diariamente nas ruas daquela cidade da Área Metropolitana de Lisboa, não há dúvida de que estes representam um "perigo constante". "As pessoas perdem a noção do que as rodeia. Já vi alguns, com o sinal vermelho para peões, pararem à minha frente na faixa, para mandarem uma mensagem", conta ao JN Urbano Paulo Reis, taxista naquela cidade. O colega, Luís Lopes, concorda e acha que as passadeiras com luzes no chão "são uma grande ideia". "Os jovens param em todo o lado para olhar para o telemóvel, andam constantemente agarrados àquilo", desabafa.
Mas as opiniões não são consensuais. Manuel João Ramos, presidente da Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados (ACA-M), concorda que a sinalização implementada na Amadora "é importante", mas defende que, "antes, há outras coisas a fazer". E destaca que os "zombies" não são só os jovens que não largam o telemóvel. "Uma pessoa de 90 anos, um indivíduo embriagado, ou uma criança de três anos, também são "zombies" e precisam de ser defendidos", observa aquele dirigente.
A urgência a elaboração de planos de mobilidade urbana sustentável e não continuar a fazer as mudanças em função de "recados" no Facebook, com medidas avulso
Para o responsável, estes recursos tecnológicos acabam por ser uma forma de governos e autarquias "evitarem responsabilidades". "Se há um problema, é preciso avisar os peões de que têm de estar atentos, mas geralmente não é o peão que agride o automóvel, é o automóvel que agride o peão", defende, acrescentando que "há muito a fazer nas cidades". "É preciso reduzir a velocidade dos automóveis e promover a acalmia no trânsito. Como? Instalar lombas, ter cruzamentos mais apertados, acabar com as vias retas e introduzir ziguezagues, colocar obstáculos à aproximação de cruzamentos", explica, considerando que isto é o "que está a acontecer por toda a Europa, mas nós continuamos a não fazer".
Também Paula Teles, presidente do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade, defende um "desenho novo" e uma "humanização" das cidades. Relativamente aos viciados em telemóvel, afirma que "é um problema que não vamos conseguir resolver" e sustenta que as cidades "não têm o chão desenhado para o peão". Ainda assim, acredita que "cada vez mais haverá um esforço para proteger o peão, mas é apenas no curto prazo". A urgência, defende, é "a elaboração de planos de mobilidade urbana sustentável e não continuar a fazer as mudanças em função de "recados" no Facebook, com medidas avulso".
Paula Teles defende também um desenho de cidades "à cota zero". "É preciso pensar as zonas residenciais com menos obstáculos para os peões e mais para os automóveis, de modo a que estes sejam forçados a reduzir a velocidade", explica.
Passadeiras tridimensionais
Manuel João Ramos concorda e dá o exemplo das "zonas 30". "No chão pode estar pintada essa indicação, mas, se não há nenhuma medida de acalmia de tráfego que evite que os automóveis andem a 50, não vale a pena dizer que é uma zona 30", diz.
A tentativa de redução de velocidade em meio urbano está também subjacente à criação de passadeiras em 3D, que dão uma ilusão de ótica que faz os condutores abrandarem quando se aproximam.
Em Portugal, a primeira experiência-piloto dura há cerca de um ano na Maia, mas já há outras interessadas em replicar o modelo, tal como nos sinais luminosos da Amadora.