As ruas pedonais estão a ganhar força, com Lisboa e Porto a anunciarem planos que devolvem às pessoas espaços antes ocupados por automóveis. Uma experiência, dizem os especialistas, que só a diminuição brutal de turistas permitiu. O futuro dirá se a ideia fica ou é apenas uma tendência passageira.
Corpo do artigo
As ruas estão a mudar de "donos". Pelo menos nas duas principais cidades do país, onde várias artérias foram anunciadas recentemente como exclusivas à circulação de peões. Assim aconteceu em Lisboa, onde, na última semana, a Câmara fechou ao trânsito automóvel as Ruas dos Bacalhoeiros, João das Regras e Nova da Trindade, no Centro Histórico, e Cláudio Nunes, em Benfica. E assim também sucedeu no Porto, onde, desde 20 de junho, apenas ao fim de semana, 16 ruas passaram a ser unicamente pedonais, conforme decidiu o Município liderado por Rui Moreira.
Em Lisboa, para que não restem dúvidas sobre o novo destino das ruas antes ocupadas por viaturas, foram pintadas a cores bem vivas as faixas que até há pouco eram de rodagem. De azul a dos Bacalhoeiros, João das Regras e Nova da Trindade, de verde a Cláudio Nunes. A esta medida acrescentou-se o alargamento de passeios e da área de 400 esplanadas, 57 das quais antes ocupadas por lugares de estacionamento. "Lisboa, como a maioria das grandes cidades europeias, está a adaptar-se à nova normalidade. Este programa promove a segurança da saúde pública, a mobilidade ativa e o comércio local, para garantir maior segurança aos clientes e trabalhadores", justificou a Autarquia lisboeta. A experiência decorrerá até 31 de dezembro e será depois reavaliada.
No Norte, no Porto, a Câmara inseriu a abertura a peões "num plano de resgate do espaço público que visa potenciar uma nova experiência de lazer e compras na cidade, decorrente da retoma da atividade económica". Outro objetivo passa pela "aposta na sustentabilidade" e pelo incentivo para "uma mobilidade mais consciente, menos dependente do automóvel e mais voltada para o uso dos modos suaves de transporte". A maior parte das ruas em causa situam-se na Baixa e no Centro Histórico .
Escrever por linhas tortas
Tais medidas apenas foram possíveis pela conjugação de dois fatores motivados pela pandemia de covid-19: "A necessidade de maior distanciamento social e a interrupção abrupta do número de turistas em Lisboa e Porto", conforme explica Paula Teles, engenheira especialista em mobilidade e planeamento do território.
Álvaro Domingues, professor na Faculdade de Arquitetura do Porto e investigador do Centro de Estudos de Arquitetura e Urbanismo, considera que a apropriação das ruas pelos peões é um fenómeno que pode abrir caminho a outras experiências ainda mais abrangentes. "Vivemos o desafio da convivência e um tempo de exceção que facilita a experimentação de soluções como esta, que trazem vantagens de flexibilidade e poderão ser alargadas futuramente para sistemas em que tais artérias sejam conjugadas com ligações próximas a sistemas de transportes públicos", sustenta.
Segundo Álvaro Domingues, o grande teste às ruas pedonais será o regresso em massa do turismo, que as perspetivas dos agentes do setor preveem que possa ocorrer no verão do próximo ano ou, no máximo, em 2022. "Só então será possível perceber se as cidades sustentam tantos espaços livres do automóvel ou se não estamos, simplesmente, perante uma moda. A pressão turística ditará o alargamento, ou não, destas medidas", considera.
As pessoas vão apropriar-se naturalmente dos lugares, das novas praças e dos novos passeios alargados
Paula Teles é mais otimista e acredita que "as pessoas vão apropriar-se naturalmente dos lugares, das novas praças e dos novos passeios alargados. E perceber que será possível fazerem as suas deslocações curtas e médias a pé". Além disso, prevê, a mobilidade suave, através de bicicletas e trotinetas elétricas, poderá também sair beneficiada. "Ciclovias conectadas com modos pedonais e estes com metros e autocarros são uma boa possibilidade", entende. "Só o funcionamento em rede melhora a saúde pública, tal como sucede na cultura de mobilidade dos países do Norte da Europa", diz.
Em Lisboa, a par do incremento de ruas apenas para peões, foi simultaneamente lançado um plano que prevê mais 70 quilómetros de ciclovias. "Para evitar que milhares de pessoas que deixaram de utilizar os transportes tragam mais carros para o centro da cidade, tornando insuportável a vida e os níveis de poluição", defendeu a Autarquia presidida por Fernando Medina.