A contestação dos médicos no SNS assumiu contornos nunca vistos. Greves, manifestações, urgências fechadas por profissionais que se recusam a fazer mais horas extra. As negociações romperam em setembro, mas já foram reatadas. Recorde os últimos episódios desta contenda e perceba o que está em causa.
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Porque estão os médicos e o Governo a negociar?
Os médicos queixam-se de estar a perder poder de compra há mais de uma década. De facto, desde o acordo assinado em 2012 que as grelhas salariais destes profissionais não são revistas. Depois de dois anos a combater a pandemia, o ambiente de descontentamento no SNS foi crescendo. Os efeitos começaram a sentir-se em especialidades como a ginecologia/ obstetrícia e, em maio do ano passado, já com hospitais em dificuldades para assegurar as escalas naquelas urgências, a ex-ministra Marta Temido aceitou negociar as carreiras médicas com os dois sindicatos médicos, a FNAM e o SIM. O prazo previsto para terminar as negociações era 30 de junho deste ano, mas não foi cumprido.
Que avanços se verificaram nos últimos meses?
Após vários meses de negociações, sem propostas concretas sobre valorização salarial, surgem no início de julho, já com o novo ministro da Saúde, alguns detalhes sobre os planos da tutela, nomeadamente para o regime de dedicação plena. A primeira proposta previa um aumento para todos os médicos de uma posição na tabela salarial da classe e um suplemento de 20% sobre o salário base para quem aderisse ao regime de dedicação plena (35+5 horas). Três meses e muita contestação depois, está em cima da mesa a subida de três posições da tabela remuneratória única (TRU) da função pública (diferente da tabela salarial dos médicos), um suplemento de dedicação plena de 25% e um suplemento de 500 euros para quem faz urgência.
O que os sindicatos criticam?
Os sindicatos médicos não aceitam que se distingam médicos que fazem urgência dos que não fazem, contestam os modelos de dedicação plena e USF-B desenhados pela tutela e pedem aumentos iguais para todos. A FNAM também reivindica a integração dos médicos internos na carreira médica.
O que implica a dedicação plena?
A dedicação plena é um regime que valoriza a remuneração do médico, com um suplemento de 25% sobre o salário base, em troca de mais trabalho. A adesão é voluntária, não há quotas, e está disponível para médicos dos cuidados primários, hospitalares e de saúde pública (desde a última reunião). No caso dos médicos que fazem urgência, implica aceitar a realização de trabalho na urgência (externa e interna), nos cuidados intensivos ou intermédios, no hospital de origem ou noutro até uma distância de 30 quilómetros. Obriga também a aceitar o alargamento do limite anual do trabalho extraordinário das atuais 150 horas para as 250 horas em 2024 e 2025 e para as 200 horas, a partir de 2026, decisão “condicionada a prévia avaliação”. A proposta inicial da tutela previa o alargamento das horas extra até às 350 horas/ano, o que foi prontamente recusado pelos sindicatos. Para os médicos que não fazem urgência, a dedicação plena implica dar mais cinco horas de consultas por semana. Se todos aderissem, haveria um aumento de 2,2 milhões de consultas por ano, segundo o Ministério da Saúde.
Quais são os atuais regimes de trabalho dos médicos?
Em resposta às críticas dos sindicatos sobre a desigualdade da proposta da tutela, o ministro da Saúde tem lembrado que sempre houve regimes de trabalho distintos no SNS. Atualmente, a maioria dos médicos, e todos os novos que entram, têm um horário de 40 horas, que resultou do acordo de 2012. Mas ainda há algumas centenas que trabalham nos regimes de dedicação exclusiva (35 ou 42 horas) ou de 35 horas (tempo completo), que foram revogados. Para os médicos internos há uma tabela salarial à parte.
E quais os que estão a ser negociados?
Além do regime de dedicação plena (35 horas de horário base +5 horas adicionais pagas por via do suplemento), está previsto que os médicos que fazem urgência possam trabalhar no regime de 35 horas ou no regime das 40 horas/semana. Para os médicos que não fazem urgência há os regimes de dedicação plena e de 40 horas. Os sindicatos exigem que todos os médicos possam optar pelas 35 horas.
O que muda nos descansos compensatórios?
Atualmente, os médicos que fazem um turno noturno de urgência têm direito a um período de descanso no dia a seguir. Esse período, a que se chama descanso compensatório, conta para efeitos do horário normal de trabalho. A atual proposta da tutela quer alterar este modelo para os médicos que fazem urgência nos regimes das 35 horas e da dedicação plena, mantendo os descansos compensatórios, mas sem prejuízo do horário normal de trabalho.
O que está previsto para os médicos de família?
O Governo decidiu alargar o modelo B das unidades de saúde familiar (USF), nas quais a remuneração das equipas está associada ao desempenho, sublinhando que tal esforço permitirá dar médico de família a mais 250 mil utentes. Porém as alterações introduzidas ao modelo não agradam e já levaram mais de mil médicos a manifestar a discordância com o diploma, entretanto aprovado em Conselho de Ministros. Subjugar o suplemento remuneratório (semelhante ao da dedicação plena) ao aumento da lista de utentes é uma das principais queixas dos médicos.