Esta história é sobre a gratidão de Maria, acompanhada pelo Centro Porta Amiga da AMI, em Gaia.
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A crueldade da vida, disseca-a Maria (nome fictício). Aos 50 anos, coube-lhe um casamento lacrado a violência doméstica. Um filho, tem dois, fruto de violação pelo ex-cônjuge. Há anos desempregada (e já explicaremos porquê), viu o divórcio marcado por espancamento poucos dias volvidos. Antes desta anatomia do sofrimento, que nos abala o sistema nervoso, Maria apresentava-se, tão simplesmente: "Tenho uma história um bocadinho triste".
Seguiu atrás do sonho. Do tradicional sonho. "Era casar. Vinha de pessoas humildes, mas isso para mim não era importante. Mas, olhe, deu para o torto", desarma-nos. O torto resultou em agressões físicas, aquando do divórcio - "ele não sujou as mãos, mandou bater" -, que lhe causaram lesões irreversíveis na visão. O torto resultou num filho vítima de violação e com patologias, que só a esta mãe dizem respeito, que obrigam a cuidados frequentes em casa.
O que explica a condição de desempregada. "Só vou aos cursos no centro de emprego. Como é uma criança [menor] de risco, muitas vezes fica em casa e tenho de tomar conta dele." No bolso entram-lhe o Rendimento Social de Inserção e o abono de família. Do pai dos filhos, chega-lhe zero. "Ele ajudar, não ajuda. Perguntou se precisávamos de máscaras. De resto, nada."
Do nada passamos ao todo da solidariedade. E às doutoras. Maria fala muito das doutoras que a ajudam. No Centro Porta Amiga, da AMI - Assistência Médica Internacional, em Vila Nova Gaia. Dão-lhe bens alimentares, acompanham-lhe os filhos, amparam-lhe a mente. E da irmã. Que mesmo tendo uma família dá-lhe o que tem e não tem, nomeadamente a renda da casa.
Da pandemia, teve o "privilégio de receber comida em casa através da Porta Amiga". Da pandemia, o crescimento de revolta nos filhos, com idades que deviam ser pintadas a esperança e alegria.
"Dizer que o vírus é democrático, também não é verdade. Veio agravar situações muito más", interrompe a diretora daquela Porta Amiga. A Susana Reis chegam mais pedidos de ajuda. De feirantes, músicos, imigrantes. Mas, sobretudo, de sem-abrigo. De 160 cabazes alimentares passaram para 220. A pressão, essa, começa a senti-la agora. Temendo o que possa vir.
Do futuro, Maria torna-o apenas presente. Ela que sabe que "ficar sem dar de comer aos filhos é muito triste". Do sofrimento - "olhe que eu tenho sofrido muito" - extrai-lhe a condição. "Tento levar um dia de cada vez. Com muito custo, mas muita dignidade."
Pobreza foi palavra não usada. Gratidão, sim. Kafka pensou, um dia, que "a solidariedade é o sentimento que melhor expressa o respeito pela dignidade humana". Ele, que não conheceu Maria.