Adolescência: Quando a ficção toca nas feridas provocadas pelas redes sociais
Entre exigências e padrões para cumprir, muitos jovens sentem que têm de mudar para serem aceites nas redes sociais. Isolados, acabam por carregar um sofrimento que nem sempre termina bem. A atenção dos pais em diálogo com as escolas é essencial para combater sinais negativos que podem comprometer a saúde mental.
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Adolescência, a minissérie britânica lançada a março de 2025 na Netflix, tornou-se um fenómeno pela forma crua e direta com que mergulha na realidade e nas dificuldades enfrentadas por imensos jovens nesta era do digital. No Reino Unido, Adolescência foi exibida no Parlamento e elogiada por deputados como ferramenta contra a misoginia e violência juvenil. O primeiro-ministro Keir Starmer apoiou a iniciativa e a série foi integrada no programa educativo, disponível gratuitamente nas escolas. Na Austrália, levou à aprovação de uma lei que proíbe o acesso de menores de 16 anos às redes sociais, exigindo verificação de idade e prevendo sanções em caso de incumprimento. Em Portugal, a minissérie britânica da Netflix também reforçou o debate sobre o uso de telemóveis e redes sociais nas escolas, sendo usada por especialistas para sensibilizar pais e alunos.
Criada por Jack Thorne e Stephen Graham, com realização de Philip Barantini, a minissérie aborda temas como a ansiedade, o bullying, a automutilação, a dependência digital, a fragilidade da relação entre pais e filhos e o peso da imagem nas redes sociais. Para Raquel Raimundo, vogal da direção nacional da Ordem dos Psicólogos Portugueses, a produção inglesa é especialmente eficaz porque se centra em testemunhos reais com os quais os jovens se conseguem identificar. “A série é crua, é verdade, mas também muito real. Está carregada de factos verdadeiros. Não é apenas a história de uma única pessoa, mas o retrato de situações que realmente aconteceram”, afirma. A psicóloga defende que este tipo de conteúdos tende a ser útil para ajudar os jovens a perceber que não estão sozinhos nas dificuldades que enfrentam. “Pode servir como alerta e abrir espaço para conversas importantes”, acrescenta, sublinhando que “o ideal seria que os adolescentes assistissem à série com acompanhamento de adultos, seja em casa ou na escola”.
Luís, 18 anos, personifica a ideia de como as dificuldades da adolescência podem marcar profundamente a vida cuja personalidade e carácter se encontram em formação. Considerado introvertido, enfrentou desafios constantes relacionados com a autoestima, principalmente devido ao bullying que sofreu na escola, fruto da sua aparência física. Esta pressão social, aliada à exigência de corresponder às expectativas da família e dos amigos, teve um impacto negativo no seu bem-estar emocional. As redes sociais, por sua vez, acabaram por intensificar este sofrimento, levando-o a sentir-se ainda mais vulnerável às comparações constantes com os outros: “Durante a minha adolescência, sinto que tive de mudar coisas em mim para conseguir encaixar-me. Sempre gostei de falar e de me expressar, mas percebi que, para ser aceite, muitas vezes, tinha de baixar o volume. Isso fez-me questionar se seria suficiente da minha própria maneira”, afirma.
A adolescência é um período especialmente sensível e desafiante porque envolve dúvidas existencialistas, de descoberta e de redescoberta. “É uma fase em que os padrões antes inquestionáveis começam a ser postos em causa. Muitos adolescentes sentem uma crise de identidade, não se reconhecem, nem nas mudanças internas, nem na imagem refletida ao espelho”, afirma Rute Agulhas, psicóloga especialista em psicologia clínica e da saúde.
Se esta fase já é naturalmente desafiante, as pressões do mundo digital só vêm intensificar o turbilhão. A geração Z cresce sob o olha constante das redes sociais, onde tudo é medido em gostos, seguidores e aparências. E num futuro próximo, a geração Alpha poderá enfrentar esse desafio num grau ainda mais elevado, considerando que será a primeira geração 100% nativa a crescer rodeada de dipositivos eletrónicos conectados à internet. “Ao ver vidas perfeitas nas redes, comecei a comparar-me, quer no corpo, como na forma de ser, e isso abalou muito a minha autoestima”, conta ainda o jovem.
O retrato de uma geração
Os dados sobre a saúde mental dos jovens portugueses são preocupantes. De acordo com os dados mais recentes da Direção-Geral da Saúde, cerca de 20% das crianças e adolescentes em Portugal apresentam, pelo menos, uma perturbação mental e quase 31% dos jovens relatam sintomas depressivos de intensidade moderada a grave. Estes dados refletem uma realidade alarmante e reforçam a necessidade de investir em estratégias de prevenção e apoio à saúde mental mais prematuramente. “Estima-se que cerca de 20% dos adolescentes sofram de problemas comportamentais, do desenvolvimento ou emocionais. Ou seja, numa sala de aula com 30 alunos, provavelmente, seis enfrentariam algum tipo de perturbação mental. Mas, na realidade, o número pode ser ainda maior”, afirma Jéssica Silva, terapeuta e vogal do conselho fiscal da Associação Nacional de Jovens Psicólogos (ANJOP).
Segundo o Observatório da Saúde Psicológica e do Bem-Estar, entre os alunos do 5.º ao 12.º ano, os sinais de mal-estar psicológico diminuíram ligeiramente em 2024, cerca de um terço para 25%, mas as raparigas continuam a apresentar níveis mais elevados de stress, ansiedade e depressão. “O isolamento e o uso excessivo do digital aumentaram casos de ansiedade e depressão. Muitas vezes, os sinais são silenciosos. Alunos calados e com boas notas podem estar a enfrentar grandes dificuldades emocionais. É fundamental sensibilizar pais, professores e profissionais para estes sinais, que nem sempre são evidentes”, adverte Rute Agulhas.
No ensino superior, os números não são mais animadores. Um estudo da Universidade de Évora, com dados obtidos em outubro de 2022 e com recolha repetida em 2023, concluiu que 23% dos estudantes de seis universidades portuguesas revelaram ter recebido um diagnóstico de perturbação mental. Entre os inquiridos, 38,9% apresentam sintomas depressivos moderados a graves e 11,8% admitem já ter pensado em morrer ou em magoar-se a si próprios.
Outro dado preocupante é o aumento de comportamentos autolesivos e ideias suicidas entre jovens. Como revela Jéssica Silva: “Tenho observado muitos casos de autoagressão e depressão em adolescentes, muitas vezes ligados ao contexto escolar. A falta de amigos, por exemplo, tem um impacto enorme, pois sabemos que nesta fase ter um grupo de pares é essencial para a construção da identidade.” A psicóloga indica que a pressão social é um dos principais fatores de risco: “Sem dados empíricos que sustentem totalmente a minha resposta, acredito que a pressão constante para corresponder a expectativas da sociedade, da escola e da própria família tem um peso enorme. E, embora os pais estejam fisicamente presentes, por vezes, estão ausentes na escuta, absorvidos pelo trabalho ou pelas tecnologias.”
O testemunho de Luís reforça esta realidade: “Sinto que ser adolescente hoje é mais difícil. As redes sociais mostram vidas perfeitas, mas, para mim, a pressão maior vem da família. Frases como ‘se não tiveres boas notas, não tens futuro’ fazem-me sentir como se não fosse suficiente.”
Da experiência como terapeuta, Jéssica Silva tem constado que os consultórios recebem cada vez mais adolescentes vítimas de bullying. Com o avanço da tecnologia, muitos destes casos tornam-se difíceis de identificar. “Há uma vergonha enorme que impede o diálogo. Muitos jovens desvalorizam o seu sofrimento por o acharem ‘menor’ do que o dos outros e acabam por recorrer à autoagressão para lidar com a dor emocional”, alerta. Para a especialista, a única forma de combater esta realidade “passa por uma resposta conjunta de pais, professores, psicólogos e de toda a comunidade educativa”.
O uso de ecrãs e tecnologias como parte da equação
Neste momento, já há cerca de 60% da população mundial a usar redes sociais e, em Portugal, esse valor atinge os 80%. “Temos já cerca de um quarto dos jovens a utilizar mais do que seis horas por dia redes sociais, situação essa que deve preocupar”, complementa Raquel Raimundo. O telemóvel tornou-se, citando Marshall MacLuhan, uma extensão do corpo: está sempre por perto. Mas este hábito, que parece inofensivo, está a tornar-se num problema sério, sobretudo entre os mais jovens. Um estudo da NOVA Information Management School (NOVA IMS) aponta que um em cada cinco portugueses já está em risco de desenvolver uma dependência do smartphone. E os números não param por aí. A nível internacional, entre 15% e 19% dos adolescentes mostram sinais de uso problemático.
O tempo excessivo em frente ao ecrã afeta muito mais do que a concentração: prejudica a saúde mental. Estudos indicam que “jovens que usam o telemóvel de forma descontrolada têm o dobro da probabilidade de sofrer de ansiedade e até três vezes mais risco de desenvolver depressão; o sono fica para segundo plano”, refere Raquel Raimundo, psicóloga. As horas passadas nas redes sociais, à noite, dificultam o adormecer e alteram os ritmos biológicos. “As redes são desenhadas para nos prender. Os algoritmos exploram estados emocionais mais frágeis como a tristeza, ansiedade, levando a um uso prolongado que interfere com o dia a dia”, explica Raquel Raimundo. “Com o tempo, pode criar-se uma dependência: adiam-se refeições, mudam-se padrões de sono. Há uma satisfação imediata quando os níveis de dopamina aumentam que reforça o comportamento.”
Vivemos numa era em que estar ligado é quase obrigatório. Ironicamente, quanto mais tempo passamos conectados aos ecrãs, mais nos desconectamos da vida real: das conversas cara a cara, da natureza, da presença no agora. “A utilização moderada das tecnologias tem efeitos positivos. Pode melhorar a saúde mental e até mesmo a satisfação com a vida. A principal dificuldade está nos extremos: não utilizar ou utilizar em excesso parece estar mais associado ao aumento da ansiedade e da depressão. O uso moderado parece ser o mais adequado para a saúde mental, o bem-estar e para a aprendizagem”, sugere.
Estratégias como pilar da saúde mental
A casa é o ponto de partida. Especialistas apontam que um estilo parental que conjuga supervisão com alguma autonomia pode criar condições para que a criança explore diferentes experiências, dentro de um ambiente seguro. “Há pais que acham que põem um filtro parental e está tudo resolvido. Na verdade, tal não substitui uma supervisão e um diálogo aberto. Isso não é garantia de nada, absolutamente”, reforça Rute Agulhas. Sem controlar os filhos durante 24 horas sobre 24 horas, o que não lhes permitiria crescer, a terapeuta sugere que “os pais encontrem um equilíbrio no que toca à supervisão e controle adequados”.
A escola desempenha um papel fundamental na vida dos adolescentes, onde passam grande parte do dia. Rita Agulhas sublinha a importância de uma colaboração estreita entre família e escola, rejeitando o confronto entre ambos. A psicóloga defende uma cultura preventiva, que vá além do currículo, criando espaços de reflexão e promovendo o desenvolvimento emocional dos alunos. “É essencial ajudar as crianças a expressar o que sentem e dar-lhes ferramentas para lidar com situações difíceis”, explica, destacando que, “com o crescimento, os jovens passam cada vez mais tempo fora de casa, pelo que este apoio é crucial”.
Jéssica Silva reforça que “compreender os interesses dos jovens é fundamental para estabelecer diálogo eficaz”. Muitas vezes, os professores acabam por ser o primeiro ponto de contacto para os adolescentes em dificuldade. Na série Adolescência, recorda que a personagem Jade preferia falar com a professora em vez da psicóloga, o que evidencia a necessidade de atenção e proximidade por parte dos educadores. Como complementa Jéssica Silva: “Não devemos deixar estas questões em branco. É preciso perceber o que o jovem sente e acompanhá-lo de forma adequada.”
A crescente crise de saúde mental entre os jovens exige uma resposta urgente da sociedade. O impacto das redes sociais, a pressão social e a escassez de apoio especializado não podem continuar a ser ignorados. Rute Agulhas destaca “a importância de uma cultura de proteção que ultrapasse a família, abrangendo todos os contextos em que as crianças se movimentam, como o desporto, atividades extracurriculares e religiosas”. Para gerar este ambiente positivo, a mesma especialista considera que “é essencial implementar políticas públicas de proteção à infância, com apoio especializado para os profissionais e respostas rápidas e articuladas, garantindo que todos os jovens tenham acesso a ajuda, independentemente do nível socioeconómico”.
Uma das propostas do programa eleitoral da AD, que ganhou as últimas eleições e formou Governo, passa “por limitar o uso de telemóveis nas escolas até ao 6ºano e o acesso às redes sociais pelos jovens até aos 16 anos”. O recém-empossado ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandra, ainda não se pronunciou nesse sentido.
*Raquel Bernardo
Desde que aprendeu a ler e a escrever que as letras se tornaram as melhores aliadas da criatividade. Quando o gosto pelos livros e jornais se juntou à necessidade de descoberta, Raquel Bernardo identificou na licenciatura em Jornalismo, da Escola Superior de Comunicação Social (ESCS), em Lisboa, onde é aluna do 1ºano, o caminho certo a seguir para ser fiel às suas aspirações de criança. No curso, não perde uma oportunidade para acrescentar conhecimento ao mundo porque, como acredita, a informação, quando verdadeira, nunca é em excesso.