Os incels "são jovens vulneráveis, que se consideram pouco atraentes e que procuram uma forma de preencher esse vazio social", diz a psicóloga clínica Ana Luísa Abreu.
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O sucesso avassalador da série britânica “Adolescência”, da Netflix, que nos pôs a todos a olhar para a história de um adolescente que mata uma colega da escola à facada, lançou o debate – vários até – e o termo incel entrou num ápice no nosso vocabulário. Mas, na verdade, há muito que estava na boca dos jovens. Para o entendermos, é preciso contextualizá-lo. A ideologia incel emerge à boleia da manosfera, que é, no fundo, uma comunidade alargada online, presente nas redes sociais, em páginas de Instagram, do Reddit, do TikTok ou do YouTube, em fóruns ou até em chats de videojogos, onde são promovidos ideais misóginos. “São páginas onde se defende a ideia de que os homens são vítimas do feminismo e das evoluções que fomos sofrendo na sociedade”, explica Ana Luísa Abreu, psicóloga clínica, pós-graduada em Direitos Humanos e que tem vindo a trabalhar a área das masculinidades, sobretudo com adolescentes e jovens adultos.
Dentro da manosfera, há vários grupos e, entre eles, estão os incels. São “celibatários involuntários”, homens que não conseguem ter relações, sexuais ou românticas, com mulheres. Ora por se considerarem feios, baixos, gordos, inferiores (e, tantas vezes, são gozados pelos pares por isso), ora por acharem que as mulheres não prestam e que lhes negam o seu direito básico ao sexo, o que resulta invariavelmente em discursos de ódio, raiva e de incitamento à violência, por se sentirem rejeitados. “Há uma narrativa de que as mulheres dominam o mercado do sexo, que só querem ter relações com homens bonitos e que, por isso, são culpadas, o que lhes dá a eles o direito de se vingarem. É como se a violência fosse legítima.” Unem-se, assim, em comunidades, com outros que vivem o mesmo que eles, onde abundam apelos a violações e ataques. A par disso, está muito presente a ideia de que ninguém é inocente, “porque ninguém faz nada perante esta injustiça”. Tanto que, nestes grupos online, idolatram-se figuras como Elliot Rodger, que matou sete pessoas e feriu outras 14 em Isla Vista, na Califórnia, antes de se suicidar. Momentos antes do ataque partilhou nas redes sociais o seu desprezo por mulheres e a sua frustração por, aos 22 anos, ainda ser virgem.
“Há uma grande necessidade de estatuto"
Chegados aqui, importa referir que os incels são maioritariamente adolescentes e jovens adultos com menos de 30 anos, heterossexuais e, essencialmente, europeus e norte-americanos, que culpam a emancipação feminina pelo seu insucesso. “O discurso que usam é quase uma fonte de empoderamento, uma recuperação da masculinidade perdida. É óbvio que estes jovens não vão acabar todos por levar a cabo um ataque violento, mas fantasiam com isso”, aponta Ana Luísa Abreu. Nas redes sociais, recorrem muito a memes sádicos, a imagens que objetificam a mulher e até a emojis que escondem significados para lá do óbvio. É o caso da redpill, numa referência ao filme Matrix, o comprimido vermelho que permite “despertar para a crueldade em que os homens vivem e para a manipulação dos movimentos feministas”.
O algoritmo também tem dedo nisto, lê estes adolescentes e passa a entregar-lhes, nos seus smartphones, quase exclusivamente conteúdo misógino, vídeos de influencers como Andrew Tate (que foi inclusive detido na Roménia por explorar sexualmente mulheres) e outros youtubers, até portugueses, que seguem esta narrativa.
Teresa Freire, docente na Escola de Psicologia da Universidade do Minho e cuja área de investigação é a adolescência, chama a atenção para a importância desta fase do desenvolvimento: “A adolescência é um período em que os jovens se estão a descobrir como pessoas, quem são os pares, se são pessoas que vivem e passam pelas mesmas coisas que eles. Dentro dos grupos de adolescentes há sempre conotações, classificam-se uns aos outros, a categorização é uma parte muito relevante nesta fase.” E, claro, “o facto de terem namoradas ou não também é conotável”. “Estas conotações acabam por levá-los a criar imagens sobre si próprios. Ou seja, as atribuições externas também acabam por ser incorporadas na sua identidade.” Ao mesmo tempo, “há uma grande necessidade de estatuto, de prestígio, de respeito”. “Vejamos, o protagonista da série legitima o homicídio com tudo aquilo que ele achava que a sociedade à sua volta estava a fazer com ele. E aquela era a forma de ele ser reconhecido pelos outros.”
Discurso em código
Há uma certeza: a ideologia incel, esta ideia de que o feminismo foi longe demais, também está presente em Portugal. Ana Luísa Abreu viu-o no trabalho que fez ao longo de três anos, em que esteve em escolas com cerca de 1900 jovens dos 13 aos 16 anos. “Em praticamente todas as turmas consegui identificar este discurso, não porque me dissessem diretamente que são incels, mas reconhecia os argumentos.” Além disso, todos conhecem Andrew Tate. “E sempre que perguntava o que é a masculinidade, ouvia termos como ‘macho alfa’. Atrevo-me a dizer que todas as turmas sabiam o que eram estes grupos da manosfera.” Mais preocupante ainda foi o facto de a psicóloga ter percebido que há uma grande ignorância sobre esta realidade entre os adultos. “Demos formação a profissionais em escolas e eles comentavam que já tinham ouvido os alunos falarem disto, mas que não sabiam o que queria dizer – os próprios pais também não têm ideia, porque o discurso é muito em código. E é importante capacitar estes profissionais para que reconheçam isto e possam sinalizar, nomeadamente ao serviço de psicologia.”
Na maioria das vezes, acredita Ana Luísa, os incels “são jovens vulneráveis, que se consideram pouco atraentes fisicamente, se sentem sozinhos, provavelmente com consumos excessivos de videojogos e de pornografia, e que procuram uma forma de preencher este vazio social”. Alguns acreditam na ideia fatalista de que estão condenados a serem rejeitados (a visão a que chamam de blackpill). Por viverem muito isolados, é ainda mais difícil desafiar estas crenças que surgem no ambiente online.
Extremismos
Bruno Madeira, professor universitário e historiador com investigação na área da extrema-direita, alerta ainda para outro ponto. É que a retórica que abunda na manosfera cruza outros extremismos e os discursos sobrepõem-se: além do ódio profundo às mulheres, estão presentes o racismo, a homofobia, a anti-imigração. “Esta é uma cultura muito sediada na Internet, que aparece inicialmente em fóruns de nicho nos Estados Unidos”, refere o investigador. O crescimento do fenómeno, diz, coincide com a chegada ao poder de Donald Trump, em 2016, e desde então “tornou-se, de alguma forma, mainstream”. “Com figuras como Andrew Tate ou Joe Rogan que partilham a ideia de que uma mulher em condições é aquela à moda antiga, que cuida da casa, que não tem opinião, e será esta a mulher de que os incels precisam.” Além disso, avisa, “também há um paralelo a surgir no lado feminino, é o movimento das mulheres tradicionais, que pretende abdicar dos direitos conquistados e que começa a ter algum sucesso”.Madeira não descola a manosfera da extrema-direita, que lá está infiltrada, “está tudo ligado e a prova disso é o sucesso que partidos como o Chega têm entre jovens rapazes entre os 18 e os 25 anos”. Mas enfatiza um detalhe: “Hoje, há um conjunto de discursos que oferece um carácter identitário a muitos grupos sociais. Mas há um grupo que parece ter ficado esquecido, o dos rapazes brancos e heterossexuais, adolescentes e jovens adultos a quem não é oferecida uma referência para seguirem”. Acabam a seguir youtubers e podcasters que lhes entregam um modelo de masculinidade bastante simples. “Dizem-lhes que eles não têm de sentir baixa autoestima, que o problema está nas mulheres. Há um claro aproveitamento político destes miúdos.”
Perante o fenómeno, o que fazer? “Não podemos ter um discurso moralista e condená-los à partida. É preciso oferecer modelos identitários aos jovens que estão a formar a sua personalidade”, aponta Madeira, que acrescenta: “Perdemos demasiado tempo a demonizar os sítios onde eles estão, mas é precisamente aí, nos videojogos, nas redes sociais, que devíamos estar”. A esse respeito, Ana Luísa Abreu sugere ser o próprio Estado a criar um grupo de trabalho para perceber a dimensão do fenómeno e intervir, nomeadamente com uma campanha nas redes sociais com figuras de referência, por exemplo jogadores de futebol, “que passem uma imagem de masculinidade alternativa, para que não haja esta sensação de vazio, de falta de referências e sentimento de injustiça”.