Natural da Nazaré, antigo ministro da Justiça e juiz conselheiro jubilado, Álvaro Laborinho Lúcio morreu aos 83 anos. Jurista, escritor e defensor dos direitos das crianças, marcou a Justiça portuguesa e a cultura com rigor e dedicação.
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A Nazaré despede-se de um dos seus filhos mais ilustres. Álvaro Laborinho Lúcio, antigo ministro da Justiça e juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça, morreu esta quinta-feira, 23 de outubro, aos 83 anos, na sua residência na vila que o viu nascer em 1941.
Laborinho Lúcio marcou a Justiça portuguesa ao longo de décadas. Foi ministro da Justiça na década de 1990 e, em 2003, ministro da República para os Açores. Também foi diretor do Centro de Estudos Judiciários durante dez anos e integrou a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, alertando para a urgência de quebrar a cultura de silêncio e ocultação. Em 2005, foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo pelo presidente da República Jorge Sampaio, reconhecimento pelo seu percurso notável como jurista, professor e ministro da Justiça.
Também recebeu a Grã-Cruz da Ordem de San Raimundo de Peñafort de Espanha, atribuída pelo rei D.Juan Carlos, homenagem ao seu contributo à justiça e ao estudo do Direito.
Uma vida de serviço
Nasceu e cresceu na Nazaré, filho único de uma família que unia a tradição piscatória do pai à projeção pública do lado materno. Fez a escola primária na escola dos pescadores, detestava Matemática e era conhecido como cábula, mas sempre curioso e atento à vida que o rodeava.
Ainda jovem, cedo se interessou pelo teatro e pelo cinema, experiências que moldaram o seu olhar crítico e criativo antes de optar pelo Direito. Estudou em Alcobaça e nas Caldas da Rainha, mantendo residência na Nazaré, e depois em Coimbra, onde mergulhou na cultura académica e política dos anos 60, participou em grupos de teatro e danças regionais, e viveu experiências que marcariam a sua visão de Justiça e cidadania.
Aos 70 anos, começou uma nova vida como escritor, provando que nunca é tarde para se reinventar. Entre 2014 e 2025 publicou seis livros: "O Chamador" (2014), inspirado em pessoas que conheceu ao longo da vida - sem-abrigo, presos, doentes mentais - transformadas em personagens de um romance sobre humanidade e justiça; "O Homem Que Escrevia Azulejos" (2016), finalista do Prémio Fernando Namora, que aborda bem, mal e liberdade política; "O Beco da Liberdade" (2019), centrado num juiz e também sobre liberdade, polémico e reflexivo sobre dilemas éticos; "As Sombras de Uma Azinheira" (2022); "A Vida na Selva" (2024); e "Marília ou a Justiça das Crianças" (2025), escrito em coautoria com Odete Severino Soares, destinado a sensibilizar crianças, jovens e adultos para a importância de ouvir e respeitar a voz das crianças, especialmente em situações de divórcio ou separação dos pais.
Laborinho Lúcio teve seis filhos: dois biológicos do primeiro casamento, duas filhas adotadas - irmãs cabo-verdianas que tinham 1 e 3 anos na altura da adoção - e dois enteados da atual mulher, que sempre considerou como seus. Mantinha uma relação próxima e afetuosa com todos eles, chamando carinhosamente as filhas adotadas de "caramelo" e "chocolate". Para ele, "filhos são filhos", convicção que atravessou todas as suas escolhas de vida.
Sempre independente e fiel às suas convicções, defendia a honestidade e a coerência. Dormia bem, sem pesos na consciência, e não abria mão de ser leal aos compromissos que assumia. O seu percurso mostra alguém que conciliou rigor, ética e humanidade, da magistratura à política, da escrita à vida familiar.
A notícia chega numa semana em que o país ainda se encontra de luto pela morte de Francisco Pinto Balsemão, antigo primeiro-ministro e figura histórica do PSD, cujo funeral decorre esta quinta-feira, reforçando o sentimento de perda que atravessa a sociedade portuguesa.
Álvaro Laborinho Lúcio deixa um exemplo de serviço público, pensamento crítico e dedicação à cultura. Até aos últimos dias, continuou a pensar, a escrever e a lutar pelo país em que acreditava, provando que uma vida pode ser plural, intensa e reinventada em qualquer idade.