António Cunha: “O modelo centralista dá sinais de falência, de incompetência”
Minhoto de 63 anos que já liderou a Escola de Engenharia, foi reitor da Universidade do Minho e presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, António Cunha lidera, há quatro anos, a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N).
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Passaram-se três anos desde que elogiou, numa entrevista à TSF e ao JN, a reforma administrativa do Governo socialista, desafiando a que fosse dado o “grande salto” e se perguntasse aos portugueses se queriam a Regionalização. Com quem é que está mais desiludido desde então, com António Costa, Luís Montenegro ou Marcelo Rebelo de Sousa?
Essa reforma, esse salto, foi um raio de esperança, trouxe uma nova visão e um avanço no caminho para uma república de proximidade. Não me parece adequado encontrar culpados. Todos os agentes que nomeou têm vindo a referir o seu compromisso com um nível de decisão regional mais forte, com um reforço das competências das comissões de coordenação. O modelo, a velocidade com que isso se faz, tem nuances, é diferente para cada um desses agentes, depende dos contextos políticos. Tenho dito e reforço que é importante irmos no caminho certo, mas também o é não pararmos. E não estamos parados, estamos a consolidar uma reforma nas comissões de coordenação, com um reforço significativo de competências, nomeadamente na agricultura. E temos tido o atual Governo, através do ministro Castro Almeida, a reforçar e a explicitar o seu propósito em continuar nessa linha. A minha esperança continua viva.
Mas admite, pelo menos, que as condições políticas que o Governo de António Costa teve, com maioria absoluta, poderão não existir tão cedo? A ideia de um referendo pode estar, a médio ou longo prazo, posta em causa?
A ideia da Regionalização, e nomeadamente de um referendo, de acordo com as palavras do primeiro-ministro, não está na agenda do atual Governo. Precisaremos de uma nova legislatura para esse assunto ser posto em cima da mesa. Mas parece-me que há muito caminho a fazer. Faria sentido termos um referendo dentro de um ano ou pouco mais do que isso? Provavelmente não, a sociedade não está preparada para isso.
A sociedade ou a política?
Sendo eu um regionalista convicto, reconheço que neste momento a Regionalização é uma palavra que tem muitos anticorpos, mesmo na sociedade portuguesa. Eu posso discordar, mas tenho de aceitar e perceber. O caminho que devemos fazer é o de reforçar as competências dos níveis regionais. O desafio é demonstrar que essa é uma aposta vencedora, que as populações vão sentir uma diferença positiva nesse novo quadro de decisão. À medida isso for sendo bem-sucedido, ganhar espaço para legitimar um nível de governação diferente, traduzindo isso no nosso ordenamento legislativo, com a criação de regiões formais, com os poderes efetivos que prevê a Constituição. Esse será o passo depois de darmos provas de que o nível de decisão regional é importante, que garante melhores condições de vida e desenvolvimento aos portugueses.
No recente congresso de Braga do PSD, Luís Montenegro anunciou medidas de coesão territorial e reabilitação urbana. Faz sentido falar de coesão territorial e anunciar apenas investimentos em Lisboa, que é a região mais rica do país?
Nós percebemos que existem problemas nas grandes metrópoles. É um paradoxo que resulta do sistema que fomos criando, de congestão dos grandes centros urbano, um círculo vicioso em que se reforçam os grandes centros, atraímos ainda mais pessoas e a qualidade de vida piora. É preciso é um modelo de desenvolvimento diferente. Isto não tem a ver com governos, nem com partidos, os últimos 50 anos mostraram que não estamos no modelo de desenvolvimento certo.
Numa linha de pensamento semelhante à do primeiro-ministro, o ministro da Coesão Territorial, Castro Almeida, pediu “menos radicalismo” e defendeu a integração de todas as regiões, incluindo Lisboa, nos financiamentos de coesão. Antecipa o risco de serem desviadas verbas das regiões mais pobres para a mais rica?
Está muita coisa em causa, desde os volumes financeiros, aos modelos de governação associados à política de coesão. Importa que os orçamentos sejam reforçados, ou, no mínimo, que não sejam diminuídos. Mas importa também que haja modelos de governação com maior peso das estruturas e decisões regionais. Essa questão de algumas zonas de Lisboa prende-se com a dificuldade do país em fazer os investimentos necessários em zonas mais ricas. Quanto a mim, a principal fonte desses financiamentos deveria ser o Orçamento do Estado (OE). O problema é que o OE não chega para tudo. O país devia ser capaz de gerar mais riqueza. E voltamos à questão inicial, o país só vai gerar mais riqueza se tiver um modelo de desenvolvimento diferente. Se Lisboa for a capital de um país mais rico, terá mais riqueza, nomeadamente para gerir os projetos e garantir a qualidade de vida de que precisa.
O princípio dos fundos de coesão é o de aproximar as regiões mais pobres das regiões mais ricas. Quando o primeiro-ministro ou o ministro da Coesão se referem à utilização de fundos de coesão para fazer evoluir as regiões mais ricas, estão a trair esse princípio, ou não?
Os fundos de coesão têm dois princípios: o princípio da subsidiariedade, segundo o qual a decisão deve ser feita ao nível mais próximo e mais adequado; e o princípio da adicionalidade, segundo o qual os países devem ter um modelo de repartição equitativa dos seus fundos próprios, funcionando os fundos de coesão como supletivos nesse financiamento. É um modelo teórico que enfrenta, na prática, algumas dificuldades, face a necessidades específicas que o OE não consegue cobrir. É por isso que devíamos apostar num modelo de desenvolvimento diferente, capaz de gerar mais riqueza.
A forma como o PS, primeiro, e o PSD, agora, estão a gerir o PRR é um indicador sobre a vontade de descentralizar?
O PRR é um programa que nasce nas circunstâncias muito particulares do pós-Covid. Fui muito crítico quanto ao modo como foi pensado, a partir de um modelo centralizado, e como foi lançado, com uma gestão extremamente centralizada, em que a participação das regiões é minimalista. Mas importa reconhecer que o mais notável foi que, pela primeira vez, a União Europeia foi capaz de reagir conjuntamente, de uma forma mutualista, subscrevendo um empréstimo conjunto, e que foi capaz de o fazer rapidamente. Coisa diferente é tirar ilações de um modelo que nasceu de um contexto muito particular,
E não acha que estão a ser tiradas essas conclusões?
Eu acho que a lição que podemos tirar é que o modelo de gestão centralizada não traz melhorias face a uma gestão mais participada e mais regionalizada dos fundos. Mas quero deixar uma ressalva: é preciso cuidado com generalizações, haverá sempre níveis de investimento onde a decisão é centralizada, se estamos a falar de grandes infraestruturas nacionais, que cobrem o país. Voltamos ao princípio da subsidiariedade, o que é importante é que a decisão seja tomada no nível adequado.
Com esta ideia que está a ser ponderada, de centralizar a distribuição e a gestão dos fundos europeus, mesmo ao nível de Bruxelas, não teme o esvaziamento, no caso português, das CCDR?
Em Bruxelas há diferentes posicionamentos, no quadro da democracia em que vivemos. Há algumas forças a apontar nesse sentido, mas há muitas outras a apontar no sentido do reforço da dimensão regional. No fórum que organizamos na semana passada, foi apresentado um estudo muito relevante sobre os resultados da gestão centralizada do PRR, evidenciando que não há de facto vantagem. Antes pelo contrário, pagamos mais uma vez, em muitos casos, o peso das decisões centralizadas.
Voltemos a Lisboa e à forma como a região está a ser alterada estatisticamente, para que o Oeste, o Vale do Tejo e a Península do Setúbal também sejam elegíveis para receber fundos. Uma vez que o bolo total não será alterado, isso não vai prejudicar, na prática, as restantes regiões, incluindo o Norte?
A resposta mais adequada é não. O que Portugal recebe é o resultado de uma multiplicação entre a população de um determinado território e o diferencial do PIB per capita desse território para a média europeia. O que chega a Portugal é a soma do que cada uma dessas regiões deve receber.
O que está a dizer é que Portugal, no seu todo, não perde?
O bolo europeu é sempre o mesmo. O facto de aparecer uma nova região, ou uma nova NUTII, em Lisboa, não vai tirar à fatia portuguesa, essa fatia até vai crescer.
Mas pode tirar às outras regiões?
Sendo o bolo europeu o mesmo, e acrescentando-se várias regiões, perdem um bocadinho, mas é negligenciável. Coisa diferente, e numa dimensão mais política, é transformar as regiões e a divisão administrativa do país em algo que é uma contabilidade europeia. Essa abordagem, que já começou no Governo anterior, e que está a ser continuada, é um bocadinho entrópica, confusa. Retira identidade, coerência, ao que devem ser as regiões. É evidente que há uma nuance, mais difícil de explicar: uma coisa são as regiões para esta contabilidade europeia, e portanto os programas regionais que podemos ter, outra coisa são as comissões de coordenação e as regiões administrativas que temos, e que podem não coincidir. A Norte, temos a felicidade de ter uma região que corresponde a um território coerente na orografia, nas bacias hidrográficas, na história, na população. A contabilidade europeia que referi não me parece positiva para o processo de construção de um país mais regionalizado.
Já se referiu nesta entrevista ao processo de descentralização. Mas nem tudo parece estar a correr como previsto, a julgar, por exemplo, pela posição recente do Conselho Regional do Norte, o órgão da CCDRN que reúne, entre outros, os presidentes de Câmara. O que que se passa?
Penso que se refere à posição sobre o aprofundamento das competências para as comissões de coordenação. Eu não usaria esse léxico de que as coisas não estão a correr bem. Voltaria à minha ideia inicial, as coisas estão a andar a uma determinada velocidade...
Mas não à velocidade que estava prevista...
A reforma tem um enquadramento. Tivemos um primeiro documento, no Governo anterior, uma resolução do Conselho de Ministros de dezembro de 2022, que mostrava uma vontade enorme de transferência de competências para as comissões de coordenação. Essa vontade foi materializada num decreto de lei de março de 2023, já um bocadinho empalidecida. E empalideceu ainda mais quando saíram, em outubro de 2023, os estatutos das comissões de coordenação. Do ponto de vista prático, as competências foram sendo reduzidas e mitigadas. Mas, volto a dizer, demos um passo muito grande. Há um ano, a CCDR-N tinha 320 pessoas, hoje tem mil. Os desafios de hoje são os de uma gestão integrada do território. E uma gestão integrada do território é uma gestão multidimensional. Hoje, as comissões de coordenação têm mais ferramentas para a fazer, porque, para além do ordenamento do território e de algumas competências no ambiente, que já tinham, têm a agricultura. Uma gestão integrada do território, sobretudo à luz dos novos paradigmas com os quais estamos totalmente comprometidos, de sustentabilidade e até de neutralidade carbónica. Precisamos de trazer para esta equação a floresta, a proteção da natureza, a água, competências nesses domínios, e é nesse sentido que se manifestam os membros do Conselho Regional. Mais uma vez, é a vontade de ir à frente. A centralidade na questão ambiental dá uma enorme relevância ao território e à gestão desse território. É no território que as coisas acontecem, é no território que se jogam as questões da neutralidade carbónica, o território tem de ser gerido de um modo multidimensional a uma escala regional, não pode ser feito a uma escala nacional. Por outro lado, temos a congestão dos grandes centros urbanos e da Administração Central. O modelo centralista dá sinais de falência. Temos estruturas centrais, as megaestruturas da Administração do Estado, que dão sinais de falência, de incompetência, porque é impossível gerir nessa dimensão multidimensional à escala nacional. É por isso que eu acredito que o processo de descentralização irá avançar.
Quando se analisam os indicadores regionais, há um dado que salta à vista. A Região Norte não só continua a ser bastante mais pobre do que o país, como parece estar a ficar para trás. O PIB per capita do norte, que chegou a ultrapassar os 87% da base nacional, baixou, entretanto, para pouco mais de 85%. O que é que está a falhar?
A quebra do PIB não é da Região Norte, é de todo o país. Nós temos convergido, ao longo dos últimos anos, quer com a Europa, quer com Portugal, coisa que não aconteceu, por exemplo, com Lisboa e Vale do Tejo. Coisa diferente é o atraso estrutural da região, que está a ser debelado, mas não se faz de um dia para o outro. Há 10 anos, a justificação para o nosso atraso era o baixo nível de formação, de habilitações literárias da população, o mais baixo do continente, bem como o facto de sermos uma região industrial e exportadora, mas com indústrias de baixo valor acrescentado. Há 10 anos, era este o diagnóstico. O que temos hoje? Temos uma mudança significativa no perfil da formação: na população até aos 32 anos já temos dos melhores indicadores do país, embora a população acima dos 40 anos continue a ter níveis de literacia muito baixos. O nosso perfil económico também se alterou significativamente: dos 27 mil milhões de exportações no ano passado, o maior setor, com 20%, é a indústria automóvel, o têxtil representa 17%, e máquinas e equipamentos elétricos 12%. Isto é radicalmente diferente do que tínhamos há 10 anos, quando o têxtil e o calçado representavam mais de 30% das exportações. Por outro lado, é na Região Norte que se estão a fixar indústrias ligadas a novos setores como o espaço, a produção de chips, a condução autónoma. Mas ainda temos, sim, um Norte a várias velocidades, e um setor agrícola onde os níveis de rendimento são muito baixos. Produzimos alguns dos melhores vinhos e azeites do mundo, mas, nas prateleiras dos supermercados, em Portugal e no estrangeiro, os preços de venda não evidenciam essa qualidade.
Nesse caso, a CCDRN e o seu presidente não deveriam aplicar políticas de discriminação positiva, ou seja, canalizar mais dinheiro e investimentos para as sub-regiões mais pobres?
Deviam e é inequívoco que aplicam. Relativamente aos fundos europeus que recebemos para o Programa Regional do Norte, um cidadão da Terra de Trás-os-Montes receberia 1,5 mais do que um cidadão da Área Metropolitana do Porto. Se tivéssemos alguém no Porto a receber 100 euros, em Trás-os-Montes seriam 150. Mas o modo como o distribuímos não é com um fator de 1,5, é com um fator de cerca de 6. Essa é a diferenciação positiva que fazemos, valorizando o Interior.
Porque é que o Aeroporto do Porto não aproveita melhor a saturação do Aeroporto de Lisboa? E, já agora, um novo aeroporto em Lisboa, com mais capacidade, coloca em risco o crescimento do Sá Carneiro?
O aeroporto Sá Carneiro irá crescer este ano entre 4% e 5%, aproximar-se-á dos 16 milhões de passageiros, é um crescimento notável. Mas precisa de crescer mais, em rotas europeias e sobretudo em rotas intercontinentais. Para além do Norte, o “hinterland” do aeroporto inclui o Centro e envolve também a Galiza, da qual se está a tornar cada vez mais o principal aeroporto. À medida que tenha mais ligações internacionais, nomeadamente para o outro lado do Atlântico, isso vai acontecer de um modo muito claro. Esse é o caminho, que passará por um novo terminal e poderá mesmo passar por uma nova pista. Quanto ao novo aeroporto de Lisboa, é um desígnio nacional, todos precisamos que esse aeroporto exista, não o vemos como um perigo para a região, antes pelo contrário. Mas gostava a esse propósito de destacar mais duas coisas. Se tudo correr bem, o novo aeroporto entrará em funcionamento dentro de 10 anos, e esse é um tempo em que o aeroporto Sá Carneiro vai crescer. Por outro lado, existe também algo que os anglo-saxônicos designam como “game changer”, algo que vai alterar tudo: o momento em que tivermos a alta velocidade ferroviária a estruturar a nossa frente litoral, a ligar os dois aeroportos, e também, como esperamos, e é um dos projetos mais estruturantes para a região, quando a alta velocidade nos puser no meio da frente atlântica, ligando-nos à Galiza de um modo mais eficiente. O Aeroporto Sá Carneiro passará a ter um “hinterland” da Corunha a Lisboa. Conjuntamente com o novo aeroporto de Lisboa, serão duas infraestruturas essenciais para o desenvolvimento do país.
Cruzou a questão do aeroporto com a da alta velocidade ferroviária e tem sido de facto um grande defensor da ligação até Vigo. Mas, recentemente, o Governo admitiu também estudar uma ligação entre Porto e Madrid, por Trás-os-Montes. Entre uma e outra, qual lhe parece ser prioritária?
Não são concorrenciais. A ligação Porto-Vigo é para estar pronta em 2030, tem parte do seu financiamento assegurado. A ligação Porto-Bragança e depois de Bragança a Puebla de Sanabria ou a Zamora, é um processo que nasce da sociedade civil, que teve o mérito de ser acolhida, e que até está no Plano Ferroviário Nacional, mas para a década de 50. Vamos trabalhar para que seja mais cedo, mas é uma escala temporal diferente. E, já que falamos de ferrovia no Interior, a eletrificação já devia estar na Régua e no Pocinho há muito tempo, tarda em chegar, há atrasos significativos.
Está a um ano de terminar o mandato. O bloco PS-PSD que o apoiou mantém-se, ao ponto de, daqui a um ano, o convidar para um segundo mandato?
Não sei o que pensam os partidos sobre isso...
Mas gostaria de fazer um segundo mandato?
É indiscutível que eu gosto deste desafio. Qualquer decisão nesse sentido terá de basear-se em perceber se temos condições para o executar. Em tese, a decisão pode ser tomada independentemente do que pensam os partidos, embora seja evidente que o peso desses dois partidos é incontornável. Mas a decisão será tomada tendo em conta o modo como vai evoluir o processo de reforço das competências das comissões de coordenação. E serão também importantes para essa decisão os resultados das próximas eleições autárquicas, porque são esses resultados que definem o colégio eleitoral que irá escolher o novo presidente da CCDR-N.