Arcebispo de Évora: "Igreja pode ser chamada a ter o dever de indemnizar as vítimas"
O arcebispo de Évora Francisco Senra Coelho admite que a primeira atitude que teve ao receber a lista com os nomes dos padres suspeitos de abusos sexuais foi "bloqueante" Decidiu pedir mais dados e, "em algumas horas" recebeu a informação "mais completa possível" para decidir afastar um padre suspeito. Admite que há bispos com pontos de vista diferentes, mas acredita no bom senso. E admite que a Igreja pode vir a ser chamada a ter o dever de indemnizar algumas das vítimas.
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Os bispos portugueses estão unidos no combate aos abusos e nas medidas a tomar?
Não existe desunião nos bispos. Falo-lhe de forma categórica e consciente. Os bispos são uma conferência episcopal exemplarmente unida no contexto da Igreja Universal e da Europa. O que nós temos é uma saudável pluralidade. E não é um subterfúgio para dizer que há desunião sob o nome de pluralidade. Naquilo que é o fundamento, a defesa das vítimas, a segurança da Igreja com todas as suas atividades como escutismo, movimento de juvenis, infantis, catequeses, os seus colégios, as suas estruturas sociais, centros sociais paroquiais e IPSS, tudo o que é vida interna da Igreja, é absolutamente certo que os bispos estão num só coração, numa só alma, na busca do melhor. A nossa preocupação são as crianças. Podemos ter um ponto de vista diferente, entre alguns bispos, muitíssimo saudavelmente conversados, mas temos as vítimas no centro. Não temos uma Conferência Episcopal dividida. Temos uma Conferência Episcopal unida na busca do melhor, com pontos de vista, com sensibilidades, com experiência de vida, por vezes diferentes. Mas que convergem sempre no bem comum dos menores e dos vulneráveis. Não há posições de defesa de pontos de vista clericalista, não há nenhum bispo que defenda uma atitude de ocultação, não há nenhum bispo que tenha falta de senso comum.
Mas há bispos, pelo menos, a trabalhar a várias velocidades?
A várias velocidades em tudo, na questão da forma de tratar com os sacerdotes que são apontados pelas vítimas, no entendimento sobre as possíveis indemnizações, em tudo.
Por exemplo, há bispos que ainda não disseram nada sobre a relação dos nomes, aliás alguns deles recusam-se mesmo a tomar alguma decisão sem que haja um processo civil ou canónico. É importante entender isto com clareza. Eu recebi o nome de um sacerdote que já faleceu e outro que está no ativo. Não tinha mais nada senão aquele nome. A nossa primeira atitude foi bloqueante. Escrevi ao doutor Pedro Stretch a pedir mais dados. Em algumas horas recebi, da forma mais delicada e completa possível, a informação sobre a pessoa em causa. Fiquei impressionado. E, neste contexto, segui as instruções que a Santa Sé enviou, e que dizem que deve ser efetuada uma atitude de prevenção. De proteger o próprio acusado, que pode sofrer retaliações e manifestações, e defender as crianças da paróquia.
E deve ser essa a postura de todos os bispos?
Claro. O mais difícil, para mim, foi abrir caminho apenas com um nome. Eu escolhi esta via, dar a conhecer também à autoridade civil, ao Ministério Público e dar a conhecer a Roma a partir da comissão diocesana que está a proceder ao estudo prévio. Mas é natural haver vários ritmos, até porque há dioceses com muito mais casos que a arquidiocese de Évora. E também existem diferentes possibilidades de atuação.
Há sacerdotes que questionam a credibilidade das vítimas, que não se pode dar tanto crédito às denúncias. Acredita que as pessoas que denunciaram estão a falar a verdade?
Eu não tenho o direito de ter dúvidas sobre isso. Tenho o dever de avaliar. Quando me chega uma denúncia, não tenho o direito de ter uma atitude de dúvida ou de desconfiança. Eu não vou por esse caminho de modo algum. Tem que haver investigação. Nós estamos a falar numa questão muito séria num Estado de direito. Há, portanto, uma acusação e evidentemente que há direito ao contraditório, à defesa, e há que averiguar a acusação. Isto é uma questão que se põe em todos os atos criminais, porque estamos a falar de um crime, não é uma acusação fútil ou banal, frágil, no sentido da matéria. Estamos a falar de uma matéria muito grave. A comissão diocesana e o Tribunal Eclesiástico devem proceder a averiguações e aí se verificará. O Tribunal Eclesiástico tem, portanto, um poder independente do Legislativo Executivo.
As vítimas devem ser indemnizadas?
Quando nós falamos na palavra indemnização, estamos a usar uma terminologia jurídica específica. As indemnizações são definidas e impostas à pessoa que a tem que pagar e atribuída a quem tem que receber pelo poder judicial, pelo Tribunal. Quando nós falamos em indemnizações, temos que ter em conta isto, em primeiro lugar.
Em segundo lugar, evidentemente que a pessoa responsável pelo ato no nosso sistema penal português é a pessoa que comete o ato. É diferente dos Estados Unidos, que é a instituição que tem que assumir.
Aqui se uma pessoa cometer, enfim, um erro grave na condução e matar alguém, é a pessoa que vai a conduzir o responsável, não é a empresa a que pertence o carro. Portanto, este ponto de vista é muito importante tê-lo presente.
Porém, pode haver circunstâncias em que a empresa que é dona do carro tenha culpa. Imaginemos que o carro não estava a revisto, que o carro não estava em condições para poder circular, que não se cumpriram deveres de manutenção e de, enfim, de fiscalização.
A igreja também pode ter responsabilidades. Imaginemos que aquele padre já tinha cometido vários erros, da mesma natureza, e que reincidiu, e que o padre tinha já manifestado esta patologia e o bispo o mudou e o manteve em situação de contacto com as crianças. Imaginemos que não houve formação suficiente para os sacerdotes, imaginemos que falhou na parte da igreja alguma resposta a queixas que chegaram e a diocese não deu resposta. Aí a igreja pode também, como instituição, ser chamada a fazer de facto acontecer o seu dever de indemnizar. E não há qualquer dúvida. Tem que indemnizar. Agora, eu não queria ficar nesta frieza jurídica, porque isto, quando se usa o termo indemnizar, estamos a falar disto.
Agora, eu queria olhar para uma igreja que é mãe e que tem coração de mãe na relação com as vítimas. Evidentemente, e os bispos todos comungam disto, não ouvi nenhum que não comungasse deste ponto de vista, a igreja tem que estar com as vítimas. A igreja tem a obrigação moral de apoiar as vítimas nas consultas que precisam, nas necessidades que possam ter de tratamento, de acompanhamento. Se considerar isto indemnização, o acompanhamento das pessoas que têm necessidade de ajuda, e eu com certeza, neste sentido amplo e analógico, metafórico de indemnização, eu preferia chamar isto o acompanhamento permanente junto das vítimas. Porque a indemnização vai acontecer quando o tribunal decretar que a igreja tem que dar um montante, isso é que é indemnização. E há processos que são muito exigentes e complexos de determinar as indemnizações.
Já falou com alguns dos sacerdotes que são indicados pelas vítimas? Como é que reagem às acusações?
No caso que acompanhei, não houve negação. O bispo pergunta, pede para o sacerdote escrever o que se passou, e ele voluntariamente, com toda a lealdade e a verdade, conta o que aconteceu. Evidentemente que a atitude é de grande sofrimento, de suor, de choro e prende-se com uma dimensão assumida de fraqueza humana. E há a necessidade de distinguir muito bem duas coisas.
Não sou terapeuta, mas há questões que é preciso distinguir. Um facto que aconteceu há muito tempo, em forma de episódio, imaginemos um rapaz em que foi mais um ato de homossexualidade com um menor, por vezes já com tendências para isso. Muitas vezes a solicitação não é só do padre. E outro assunto diferente é a pedofilia assumida de modo constante, repetido, com crianças e proposta do adulto e de ataque. Uma forma de violência horrorosa, de violência absolutamente monstruosa.
Eu encontrei essa situação, de uma pessoa que há 40 anos teve um episódio e que nunca mais houve, ao longo de dezenas de anos, qualquer tipo de tendência manifesta para a pedofilia. No entanto, aquele ato é um ato pedófilo, porque é um menor, aconteceu, e a pessoa tem que responder neste contexto jurídico. Mas é uma situação que me parece distinta da pedofilia no sentido puro e duro da constante atuação.
Estas pessoas não precisam de ser advertidas para o mal que fizeram, porque é um peso tão grande sobre elas que precisam, sobretudo, ser escutadas.
Não há necessidade de lhe dizer o que o senhor fez foi muito grave, porque as pessoas sentem-se esmagadas sobre a gravidade do que fizeram. É necessário, sobretudo, ouvir, escutar, escutar muito.
É esta atitude que eu encontro no sofrimento de quem apresentam estas feridas na sua história. Não há uma leveza, leviandade, há uma consciência muito ferida, necessitada também de ajuda.