As histórias de três sobreviventes da covid-19 e da cruz que ainda hoje carregam
O pior já passou mas a cicatriz que ficou não dá para esquecer. Entre a rotina dos dias, o vírus entrou sem bater à porta e deixou um rasto difícil de apagar. O cenário era inimaginável. O "bicho" apanhou-os e ficaram ligados às máquinas, em coma, durante meses num hospital. Na hora de acordar, não conseguiam andar.
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A Joaquim Matos, João Adrião e António Rodrigues, foi o que aconteceu. Só Joaquim sabe como ficou infetado pela covid-19. Os três têm antecedentes de obesidade e diabetes e viveram o processo de reabilitação no Centro de Reabilitação do Norte (CRN), em Gaia.
De pouco ou nada se lembram dos meses em que estiveram em coma. Aliás, as memórias dessa altura, quando as há, são de pesadelos apocalípticos ou alucinações.
Os conselhos que deixam a quem ainda relativiza a doença são transversais. Pedem que "abram os olhos" e que "vejam o que custa". Porque "isto não é uma gripezinha" e, sobretudo, "não o desejam a ninguém".
"Acordei e já não tinha o pé"
joão adrião
Ninguém sabe como, mas uma saída de família, no início do mês de outubro, para tomar um café, resultou em pelo menos cinco casos positivos de covid-19. Só a mulher de João Adrião, de 67 anos, escapou. Para o matosinhense, de 69, a passeata saiu cara.
"Senti muito cansaço, mas não tinha febre nem tosse e não queria ligar à Saúde 24", relata João Adrião. Não demorou mais de 48 horas a ficar internado no Hospital Pedro Hispano e foi quase imediatamente transferido para o S. João, no Porto, onde ficou em ECMO (oxigenação por membrana extracorporal).
"Foram 50 dias da minha vida que se apagaram", conta. Só recuperou os sentidos quando regressou ao Pedro Hispano, já em janeiro. "Acordei e já não tinha o pé", suspira. "Senti-me incapacitado para a vida. Tive duas semanas de pensamentos negativos", admite.
Com o apoio dos médicos e as chamadas da mulher - com quem não está há mais de cinco meses -, percebeu que "tinha de fazer alguma coisa". "Não vale a pena estar a lamentar-me", afirma.
Para já, circula em cadeira de rodas devido à falta de massa muscular e respira com uma botija de oxigénio.
"Em seis minutos, andava 75 metros"
joaquim matos
Não sabe se "foi um milagre", mas um dia depois de os médicos terem colocado a hipótese de Joaquim Matos, de 54 anos, não conseguir resistir à doença, "as coisas começaram a correr bem".
O advogado, que ficou infetado num almoço com clientes, estava a recuperar em casa. A falta de apetite terá desregulado a diabetes e, quando foi transportado para o Hospital Santos Silva, em Gaia, "as pontas das unhas já estavam a ficar cinzentas por causa da falta de oxigénio".
O coma prolongou-se por três semanas: "Confundia sonhos com a realidade. Imaginei um filme em que o hospital era controlado por um grupo de advogados que não me deixava sair".
Quando acordou, "ainda meio zonzo", não conseguia caminhar. "O vírus é de tal forma violento, que me atacou uma perna. Tenho uma lesão num nervo que me impede de levantar o pé. Na outra perna também, mas já está melhor", explica, revelando que, quando chegou ao CRN, "em seis minutos, andava 75 metros". Ainda um dia destes, explica, "queria pegar numa garrafa de água de 1,5 litros e não consegui só com uma mão".
Com a ajuda da muleta, faz exercícios de fisioterapia e terapia ocupacional para recuperar a mobilidade. O objetivo é deixar de precisar dela, mas Joaquim garante que, durante o processo, "custa tudo".
"Não sei o que é estar preso, mas foi como me senti"
antónio rodrigues
"Uma pessoa pensa que tem alta e está tudo bem, mas não é assim. Ficam muitas sequelas", garante António Rodrigues, de 53 anos. Perdeu 36 quilos de massa muscular "numa questão de dias". Caminhar permanece um desafio mas, afirma, "tem de se viver um dia de cada vez". Há quase um ano que tenta apagar a marca que o vírus deixou. A 26 de março de 2020, deu entrada no Hospital de Braga e só no passado dia 21 de janeiro, após quatro meses no CRN, é que regressou a casa.
"Não sei o que é estar preso, mas foi como me senti", recorda, garantindo que "a ansiedade de voltar a casa é muita". "Tive pesadelos, ainda em coma, com coisas que não existem", recorda.
Rapidamente percebeu que a recuperação ia ser longa. Para andar, precisa de talas nos pés, porque "não tem força para os dobrar para cima". "Os primeiros passos que dei foi em agosto. Mas não me segurava e ainda hoje não me equilibro", diz António Rodrigues. "O braço direito teve uma lesão. Não consigo fechar a mão ainda", conta. Para remediar a situação, já aprendeu a escrever com a esquerda.
Meses após a infeção, doentes mantêm sintomas
De mãos dadas com a notícia da recuperação de um dos primeiros doentes infetados pela covid-19 em Portugal, surgiram também as preocupações com as sequelas que a infeção pode provocar.
Entre elas estão dores de cabeça persistentes, palpitações, depressão e perturbações do sono, que se podem prolongar durante meses após a infeção, quer o doente tenha estado internado quer não, revela Henrique Barros, especialista em saúde pública e epidemiologista do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto.
Quando envolve uma passagem prolongada pelos cuidados intensivos, há ainda alterações "respiratórias e músculo-esqueléticas, mas também cardíacas, neurológicas, cognitivas e outras", acrescenta Francisco Sampaio, diretor do serviço de Medicina Física e de Reabilitação do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
Dos 30 aos 69 anos
"Pelo menos dois terços dos doentes desenvolvem um destes sintomas após terem recuperado da infeção", esclarece o especialista, acrescentando que o mesmo pode acontecer nos doentes assintomáticos. O grupo etário onde estas queixas ganham maior proporção é entre os 30 e os 69 anos.
Aliás, há casos em que as alterações relacionadas com o olfato e o paladar apareceram mais tarde.
No entanto, com o início da vacinação, numa perspetiva da resposta imunitária de cada doente, Henrique Barros afirma que a vacina "tenta fazer desaparecer os sintomas". De acordo com o epidemiologista, já foram registados casos em que, após a vacinação, doentes com sintomas prolongados deixaram de os ter.
No que toca ao internamento, quando é prolongado, os doentes passam largos meses em reabilitação. Mesmo depois de receberem alta, o trabalho continua.
Depois da alta
Isto porque "a necessidade de suporte ventilatório mecânico e a dificuldade de retirá-lo são fatores responsáveis justamente pela estadia prolongada dos doentes nestas unidades", acrescenta Francisco Sampaio.
"A alta hospitalar é dada a partir de um serviço de medicina interna. Este é um momento crítico no percurso do doente, porque na esmagadora maioria dos casos, continua a ser necessário dar continuidade ao processo de reabilitação e é aqui que surgem os principais constrangimentos ao desejável "continuum" de cuidados", salienta o médico do Hospital de Santa Maria.