Baixa após autodeclaração de doença está a gerar perda de seis dias de salário
Segurança Social considera que há exceção legal para evitar corte de dois períodos de três dias. Em causa poderá estar a falta de comunicação entre os sistemas de informação.
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Entrar de baixa logo após uma autodeclaração de doença (ADD) está a gerar uma perda de seis dias de salário para o doente. Em causa está a acumulação dos três dias de faltas justificadas ao trabalho com a ADD, que não são pagas, com os primeiros três dias do certificado de incapacidade temporária (CIT), que também não são pagos pela Segurança Social. O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social garante ao JN que há uma exceção legal para que o trabalhador seja abrangido apenas por um período de espera de três dias até à atribuição do subsídio de doença. No entanto, a realidade é outra, como mostra o caso de Carla Malhão, e poderá estar relacionada com dificuldades no cruzamento da informação.
Em maio de 2024, Carla Malhão sentiu-se doente e submeteu uma autodeclaração de doença através do SNS24 para justificar as faltas ao trabalho. Ao fim de três dias sem melhoras, dirigiu-se ao Centro de Saúde de Alfena, em Valongo, para uma consulta com a médica de família. A especialista atestou que se encontrava doente e emitiu um certificado de incapacidade temporária, vulgarmente conhecido como baixa, com data de início correspondente ao dia da consulta. No final do mês, qual não foi o espanto quando Carla percebeu que em vez de três perdera seis dias de salário.
Queixas sem resposta
Quase um ano depois e com dezenas de diligências e reclamações feitas pelo marido de Carla, Luís Malhão, o processo continua a saltar de mão em mão, sem ninguém a assumir responsabilidades nem explicar de que lado está a razão.
Isto apesar de o gabinete da ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social ter assegurado ao JN que o trabalhador só pode ficar sem três dias de salário. “De forma a garantir que nenhum beneficiário fique sem rendimentos por três dias de ADD seguido de mais três dias do período de espera numa situação de doença certificada” foi criada uma exceção legal ao artigo 21.° do decreto-lei 28/2004. Assim, acrescenta, quando o período da ADD se sobrepõe ou ocorre em data imediatamente anterior ao CIT, os três dias da autodeclaração substituem o período de espera da baixa para atribuição do subsídio de doença.
A Ordem dos Médicos chegou a uma conclusão diferente e até ao arrepio do que defendem os médicos de família (ler caixa ao lado). Anteontem, ao final do dia, o Conselho Nacional da Ordem dos Médicos respondeu à reclamação de Luís Malhão. No ofício, a que o JN teve acesso, aquele órgão alega que solicitou ao Centro de Saúde de Alfena a correção da situação porque “a data de início do certificado de incapacidade temporária para o trabalho deve efetivamente coincidir com o primeiro dia da autodeclaração de doença”.
Sistemas não comunicam
E uma vez que as ADD são competência da Saúde e os CIT da Segurança Social, a quem cabe cruzar a informação e identificar que os atestados estão encadeados? A pergunta foi remetida pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social ao Ministério da Saúde, mas ficou sem resposta.
Em causa poderá estar a falta de interoperabilidade dos sistemas. Fonte que esteve ligada ao processo das ADD, na primeira equipa da Direção Executiva do SNS, revela ao JN que o encadeamento automático dos períodos de vigência entre ADD e CIT chegou a ser operacionalizado pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, num trabalho em conjunto com o Instituto da Segurança Social. Porém, “havia procedimentos a consolidar” quando a equipa, então liderada por Fernando Araújo, saiu da Direção Executiva há cerca de um ano.
Médicos recusam recuar a data de certificados
Os médicos de família admitem que as baixas médicas até podem ser passadas com data anterior à observação do doente, mas recusam ser obrigados a fazer esse ajuste, tal como atualmente resulta da informação sobre a autodeclaração de doença (ADD) disponível na página do SNS24.
Naquele site, na resposta à pergunta “Como proceder se o trabalhador se mantiver doente e com consequente incapacidade para o trabalho após os três dias da ADD?” refere-se que cabe ao doente informar o médico que esteve três dias sem trabalhar e “solicitar que passe uma baixa médica com data de início igual à data de início da autodeclaração”.
Foi o que Carla Malhão fez para evitar perder seis dias de salário, mas sem sucesso, porque a médica de família recusou passar uma baixa com data anterior à da observação médica. Para o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, está correto. “O médico só tem de emitir a baixa a partir do dia em que observa o doente. Pode ir para trás, mas não é obrigado a fazê-lo”, defende Nuno Jacinto, realçando que a questão das ADD seguidas de baixas foi “muito discutida quando o processo começou” e ficou assente que o “ónus não pode ficar do lado do médico”. Aliás, na resposta à mesma pergunta que consta no primeiro manual sobre as ADD explica-se que quando a autodeclaração é seguida de um CIT, na transmissão dos documentos para a Segurança Social, “os períodos de vigência dos documentos serão encadeados automaticamente”. Mas, entretanto, o texto foi alterado.
Também a presidente do Colégio de Medicina Geral e Familiar da Ordem dos Médicos nota que o médico não tem obrigação ou dever tácito de passar uma baixa médica, tudo depende da avaliação feita caso a caso. “Decorrente da avaliação e das evidências clínicas pode justificar-se a baixa para dias prévios à observação médica”, refere Paula Broeiro, em resposta ao JN.