Conhecer o património e as obras de arte, como jazigos valiosíssimos, ou saber mais sobre a história das pessoas ali sepultadas, leva cada vez mais gente a visitar os grandes cemitérios em Portugal e no Mundo. Lisboa e Porto já organizam visitas guiadas e este nicho de turismo até já está o TripAdvisor
Corpo do artigo
O fenómeno parece estranho, mas tem cada vez mais seguidores. Em Portugal e no Mundo, muitos são aqueles que se interessam pelo turismo cemiterial. Uns atraídos pelos conceitos mais negros relacionados com a morte, outros apenas com vontade de conhecer o património, as obras de arte e a história daqueles locais. No Porto e em Lisboa, as visitas guiadas aos cemitérios são mais comuns, mas no resto do país também já se fazem.
Francisco Queiroz, historiador de arte que orienta estes roteiros, garante que se pode "entrar num cemitério como se entra num museu". E assegura que "os grupos que participam nestas visitas, normalmente, são bastante heterogéneos". Entre os curiosos, encontram-se, por exemplo, "reformados que fazem daquele um programa de fim de semana" e "casais jovens, com crianças". Para o historiador, "todos podem aprender". Por isso, as visitas tanto podem ser "generalistas", centradas, sobretudo, na história e nas características do cemitério, como "temáticas", orientadas, por exemplo, para "as histórias das famílias sepultadas" ou "para as obras de arte". E de norte a sul, as autarquias começam cada vez mais a oferecer este tipo de roteiros, ainda que sem uma periodicidade fixa.
Lugares para os vivos
Os cemitérios têm peças de arte e de arquitetura de "elevado valor" patrimonial. E, segundo Francisco Queiroz, os visitantes "conseguem desligar-se completamente dos pensamentos associados à dor e ao sofrimento" quando, de visita a um país estrangeiro, entram nos cemitérios. "Como não há qualquer relação ou ligação com os jazigos lá encontrados, é mais fácil para as pessoas encararem os cemitérios como lugares de história e de arte", diz.
Além disso, conhecer os cemitérios é conhecer a história das cidades. Ali, encontram-se os jazigos do povo e da antiga nobreza e facilmente se constatam as diferenças, "principalmente se houver a oportunidade de fazer uma visita com um especialista", salienta Francisco Queiroz, dando um exemplo: "O duque de Palmela em vez de comprar terreno no cemitério dos Prazeres, em Lisboa, quis comprar um terreno ao lado. E esse terreno acabou por ter uma entrada própria, tornando-se num cemitério particular".
Com capacidade para cerca de 200 pessoas, é hoje o maior jazigo da Europa e uma das principais atrações do cemitério que, até ao início de 2016, era o único da capital com visitas guiadas por técnicos municipais. Os percursos, gerais e temáticos, expandiram-se então ao Cemitério do Alto de São João e, de um ano para o outro, o número de curiosos duplicou, atingindo, segundo dados da Autarquia, os 1481 visitantes.
É uma questão de não se olhar para o cemitério como um sítio triste e com mortos, mas como um sítio de cultura
A barreira dos 1500 foi ultrapassada em 2017 e apesar de os Prazeres - a única cidade dos mortos de Lisboa servida pelo seu elétrico mais turístico, o 28 - continuarem a chamar um maior número de adeptos, são os portugueses quem mais visita os cemitérios da capital. Só depois surgem os italianos, os espanhóis e os alemães.
"Não há italiano que venha a Lisboa que não queira ver o sítio onde está o [escritor] António Tabucchi, nos Prazeres", desabafa, bem-disposta, a guia municipal Ema Câmara. Historiadora de formação, sabe que não falta quem ache "estranho" o facto de trabalhar todos os dias num cemitério, mas garante que não é algo que a incomode.
"Sempre achei que os cemitérios eram um espaço de história. É uma questão de não se olhar para o cemitério como um sítio triste e com mortos, mas como um sítio de cultura", resume, após um percurso de duas horas pelo Alto de São João. No grupo, há repetentes... e potenciais colegas. "É algo de diferente", sublinham Inês Mateus e Samuel Rodrigues, estudantes universitários na área do turismo que, para já, querem experimentar tudo o que puderem e, no futuro, não excluem a hipótese de mostrar aos vivos o mundo dos mortos.
Para Francisco Queiroz, este tipo de turismo deverá "continuar a crescer" em todo o mundo.
Jazigo "guarda" amor proibido na Lapa
Habituado a fazer visitas guiadas ao Cemitério da Lapa, no Porto, o jornalista e historiador Germano Silva já contou a centenas de pessoas muitas das histórias guardadas naquele que é considerado o mais antigo cemitério romântico do país. Aos participantes das visitas organizadas pela Irmandade da Nossa Senhora da Lapa, Germano revela, por exemplo, os motivos da colocação dos restos mortais do escritor Camilo Castelo Branco num jazigo de uma família da alta burguesia portuense, a família de Freitas Fortuna.
Num jazigo que guarda inúmeras histórias, as iniciais "CS", que se encontram num dos gavetões, deixam no ar um mistério que o historiador se apressa a desvendar. "Essas letras dizem respeito a Clementina Sarmento, a jovem por quem se apaixonou Emílio Urbino, filho do médico Vicente Urbino de Freitas. Era uma paixão proibida e os dois acabaram por se suicidar", explica Germano, acrescentando que Clementina "deixou um papel às irmãs de Urbino, em que pedia para ser enterrada ao lado dele". Assim foi. Contudo, "talvez por aquele ter sido um amor proibido, só foram gravadas as iniciais da mulher", completa o historiador.
No portão do cemitério, estão inscritos os versos de Soares de Passos, "esse grande poeta do romantismo". No interior, "há grandes peças de arte tumular" e "todos os símbolos têm uma história". Mesmo aqueles em que tudo é um enigma. "Há aqui um jazigo que não tem nome, tem apenas a palavra "ninguém" e um ponto de interrogação", revela Germano Silva, recordando que "antigamente, como havia rivalidade entre algumas famílias, as pessoas não queriam que se soubesse qual era o seu jazigo". Essa era a forma de prevenir "visitas indesejadas"