Autarca e economistas contestam tentação dos grandes projetos e propõem uma estratégia de "média virtude".
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Vem aí uma bazuca europeia de milhares de milhões de euros. Uma oportunidade para industrializar o país, ou um tiro que arrisca ser de pólvora seca? Rui Moreira, Fernando Freire de Sousa e Guilherme Costa, que em conjunto escreveram a "Balada da média virtude", não estão otimistas no que ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que diz respeito. "É mais do mesmo", resume o autarca, destacando o peso das "medidas de auxílio ao Estado", por um lado, e as "obras faraónicas", por outro.
Os autores têm em comum o facto de serem naturais do Porto. Outro traço que partilham: são adeptos da regionalização. Mas não querem perder tempo a chorar por uma reforma sempre adiada. Não se trata de desistir, apenas de "não ficar à espera", como diz Freire de Sousa, o economista que presidiu à Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte. "Como costumava dizer o meu pai, as ovelhas não se tosquiam a elas próprias", acrescenta Rui Moreira, numa metáfora sobre a improbabilidade da "corte" de Lisboa partilhar algumas parcelas do poder.
Livro escrito a três
Numa conversa a três com o JN, a propósito do lançamento da "Balada da média virtude" (uma edição da Porto Editora), Guilherme Costa, o economista que já foi presidente da RTP, é igualmente contundente quanto ao desenho do PRR: "Foi altamente centralizado na sua conceção e obedece a um estigma que percorre o país. Sempre que temos uma nova folga, fazemos grandes projetos. Não é essa a melhor forma de fazer funcionar as economias modernas".
Como se acusa no livro - que resultou das "conversas de três amigos, durante meses, ora à mesa, ora por Zoom", consoante o grau de confinamento ditado pela pandemia -, perante um sistema centralista esgotado, "é de temer que as elites façam desperdiçar grande parte dos fundos agora postos à disposição do país e cuja aplicação se preparam para continuar a centralizar".
E é também contra essa tentação dos "grandes projetos" que recuperam o conceito de "média virtude" que Agustina Bessa Luís identificou entre a "gente do Porto", fosse no comerciante burguês, no varino, no amolador, no tasqueiro da Ribeira, no autor de "primorosas poesias", no ourives da filigrana ou até no cangalheiro.
Campeões ocultos
Os primeiros anos do século XXI foram perdidos, no que diz respeito ao crescimento da economia. O modelo, que "tem como traço comum o centralismo", está "em fase de rendimentos decrescentes", garante Guilherme Costa. Mas, se o foco se centrar apenas no Noroeste (a macrorregião que vai de Viana do Castelo a Aveiro, passando por Braga e Porto), "alguma coisa se moveu no nosso tecido produtivo", defendem.
Enquanto a região de Lisboa abandonou os projetos industriais e se refugiou nos serviços, o Norte Litoral incorporou competências tecnológicas diversificadas e "ganhou complexidade e sofisticação industrial". Em resultado disso, "apareceram um sem-número de campeões ocultos", acrescenta o economista. Sucede que a escala dessas empresas é "insuficiente para enfrentar os mercados mundiais globalizados". É esse o salto que é preciso dar.
Razão pela qual, e voltando ao PRR (mas também ao próximo quadro comunitário de apoio), os autores da "Balada da média virtude" insistam no que parece óbvio: "O país tem de ser olhado nas suas diferenças e potencialidades", alerta Freire de Sousa. "As duas grandes regiões industriais do país [Lisboa e Noroeste], as únicas que podem conduzir a reindustrialização do país, têm características diferentes e, portanto, necessidades diferentes para poderem crescer", acrescenta Guilherme Costa.
Instrumentos locais
Cruzando a conversa com o que escreveram, fica claro que não é ao Estado central que cabe decidir onde ou em quem investir. "O Estado central não sabe quais são as empresas que deve ou não apoiar". Mas "pode ajudar a criar, pela via do financiamento, instrumentos locais com proximidade à vida das empresas mais dinâmicas".
É nessa estratégia diferenciada que encaixam as Sociedades de Desenvolvimento Industrial e Inovação (SDII), uma das propostas que os dois economistas e o presidente da Câmara do Porto gostariam de ver parcialmente financiadas, por exemplo, pelos 2693 milhões de euros disponíveis no eixo de Reforço do Capital Produtivo do PRR.
"O Noroeste Industrial, como região policêntrica, deve ter três ou quatro sociedades de desenvolvimento industrial em concorrência, com sede em cidades distintas, financiadas em parceria com capitais privados, e poder local".
Estas SDII poderiam contrariar uma das persistentes fragilidades da macrorregião Viana/Braga/Porto/Aveiro: o afastamento do poder financeiro. Mas os autores da "Balada da média virtude" reconhecem que pode não ser suficiente. "A principal debilidade atual da nossa região tem origem no afastamento do poder político e do poder financeiro". A segunda é recente, a primeira é endémica.
40 anos de discursos
Rui Moreira, Guilherme Costa e Fernando Freire de Sousa reconhecem que "acabará por se colocar a questão da legitimidade política das decisões" (leia-se a necessidade de fazer a regionalização), mas acrescentam que " não é possível ficar à espera. É necessário fazer desde já o que é possível, o que é urgente".
Como remata Freire de Sousa - quando confrontado com as posições recentes de Marcelo Rebelo de Sousa, ao remeter a discussão sobre a regionalização para depois das autárquicas -, "há uma grande diferença entre dizer que é preciso um poder intermédio entre os municípios e o poder central e a sua concretização efetiva". Esse "é um discurso que já leva 40 anos e que nunca deu lugar a nada".
Como se lê mais para o final do livro escrito a três, é certo que, "para executar a sua estratégia, o Norte precisa de poder". Mas, enquanto não há verdadeiro poder efetivo, legitimado democraticamente, ou seja, "não tendo hard power [o Norte] precisa de mais soft power, de exercer o poder das ideias, veicular novas narrativas. É a nossa balada da média virtude".
A saber
Índice
Os autores usaram o Índice de Complexidade Económica (ICE) para sustentar a tese de que a macrorregião do Noroeste está a crescer, ao contrário de Lisboa.
Produtos
Este índice proporciona uma medida de desenvolvimento económico assente na complexidade dos produtos que se fabricam e exportam.
60%
O Índice de Complexidade Económica do Noroeste cresceu quase 60% entre 2005 e 2018.
9%
O ICE calculado para a Área Metropolitana de Lisboa revela uma descida de 9% no mesmo período.
30%
A complexidade económica do país cresceu, empurrada pelo Norte, e apesar do défice de Lisboa.