<br/> Bacias naturais que retêm a água foram a chave para acabar com o pesadelo das enxurradas na zona baixa da cidade. Solução de engenharia natural deu uma vida nova aos comerciantes e moradores da zona de Couros. Até o ministro do Ambiente da China quer replicar o projeto.
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Uma véspera de Natal, no ano de 2013, mudou para sempre a vida dos comerciantes e moradores da zona de Couros, a parte baixa da cidade de Guimarães, carregada de património histórico e hoje candidata a Património da Humanidade. A 24 de dezembro de 2013, uma enxurrada de grandes proporções arrasou o interior de casas e lojas da Baixa vimaranense e foi o ponto de viragem para a decisão política que viria a culminar na construção das três bacias de retenção. Cinco anos depois, já foram evitadas 52 inundações.
Os moradores da Rua da Ramada que passaram por essa malfadada cheia na véspera de Natal ainda se lembram dela como se fosse hoje. Domingos Bragança, presidente da Câmara, tinha acabado de ser eleito há três meses e tinha um enorme problema em mãos. "Nesse dia tomei a decisão que tinha mesmo de resolver o problema. Era um investimento prioritário", conta o autarca.
A Câmara contactou a Universidade do Minho, ambas desenharam o projeto, a Oposição no executivo municipal deu contributos e a solução foi a construção de três bacias de retenção que serviriam para controlar o caudal da ribeira de Couros. Este pequeno riacho de 6,2 quilómetros que nasce na Penha e passa no centro da cidade era o responsável pelos estragos sempre que uma chuva mais forte assolava a Cidade Berço.
Era água a cair de cima e de baixo, parecia que estávamos numa cascata
António Araújo, de 70 anos, foi morar para o número 20 da Rua da Ramada poucos dias antes da famosa véspera de Natal de 2013: "Eu recordo-me de estar ali no restaurante e a água a sair pelo chão. Era água a cair de cima e de baixo, parecia que estávamos numa cascata". Antes, assegura, morar ali "era impossível", mas agora "melhorou bastante".
Na prática, as bacias de retenção são três barragens que retêm a água "deixando passar o caudal normal e, quando a tempestade passa, o caudal é esvaziado de forma lenta", explica ao JN Urbano Domingos Bragança.
Uma solução com tanto de simples como de decisiva, colocada em três pontos estratégicos: uma no parque da cidade e duas na zona das Hortas, imediatamente antes da zona de Couros, que era a área a proteger.
Domingos Bragança chama-lhe uma obra de "engenharia natural", pois cada bacia tem um declive relvado de cada lado que absorve a água sempre que a bacia começa a encher. Esse declive, em formato de escada para evitar derrames na zona da bacia, é ele próprio rico na flora e o betão só existe mesmo na zona das comportas mecânicas que abrem e fecham ao dispor do caudal.
A solução viria a ser inaugurada em junho de 2015, pondo fim a mais de 100 anos de cheias constantes em Couros. "Sempre que chovia intensamente dava-se uma inundação", recorda. Segundo os dados da Câmara, as bacias já evitaram 52 inundações, equivalentes a 273 mil metros cúbicos de água, que é o mesmo que dizer 273 piscinas olímpicas iguais à do complexo de piscinas do Multiusos.
Só o furacão Elsa passou as barreiras
O projeto chamou a atenção de E. Jinping, ministro dos recursos hídricos da China, que esteve em Guimarães na cimeira China-Europa para a água, em 2019. O governante chinês ouviu falar do projeto, ficou curioso e furou o protocolo para visitar as bacias. "Ele disse que este exemplo se aplica perfeitamente à China, que é uma questão de escala, e que ia aplicar", confidencia Bragança.
A última grande cheia na zona de Couros foi a 4 e 5 de maio de 2015, um mês antes da entrada em funcionamento da primeira bacia de retenção. Desde então só o furacão Elsa, no ano passado, causou constrangimentos na zona baixa de Guimarães e, mesmo assim, aquele foi um dos locais menos afetados da cidade e do Norte do país.
Coleciona fotos e notícias de anos de inundações
Há poucas pessoas com um conhecimento tão vasto das cheias de Couros como José Costa. O proprietário da centenária Casa Piedade, histórico restaurante do número 36 da Rua da Ramada, guarda com zelo várias fotografias, artigos de jornal e datas das maiores cheias desde que ali nasceu, há 69 anos.
O acervo, uma verdadeira enciclopédia das cheias da baixa vimaranense, começou a ser construído para mostrar provas às seguradoras que constantemente eram chamadas a pagar-lhe prejuízos das enxurradas. "Eu tinha um seguro, fazia queixa e arrumavam logo comigo no dia a seguir. Depois mudava de seguradora, aguentava um bocado e voltavam a arrumar-me. Eu fui arrumado de todas as seguradoras, já ninguém me fazia um seguro", recorda.
Na famigerada véspera de Natal, com o chão da rua tapado por mais de um metro de altura de água, ouviu dizer que os vereadores da Câmara iam visitar os locais das cheias. Decidiu, então, fazer um protesto curioso: "Peguei numa mesa destas, meti ali no meio da rua e pus-me a beber uma cerveja a brindar com um amigo, os dois de galochas. Tenho aqui essa foto".
Às vezes eram três e quatro da manhã e estávamos nós aqui, em pijama, no restaurante, a tirar tudo e a pôr em cima antes que viesse a enxurrada
Enquanto manuseia os envelopes com centenas de fotografias dentro, recorda-se de um ano em que teve "sete enxurradas de setembro a dezembro". Hoje não se compara: "Em relação ao que era, isto é um paraíso".
Com o tempo, a mulher de José desenvolveu uma audição especial para acordar quando a chuva é forte. Afinal, durante vários anos teve de se levantar de madrugada para desligar os eletrodomésticos e tirá-los das zonas baixas. "Às vezes eram três e quatro da manhã e estávamos nós aqui, em pijama, no restaurante, a tirar tudo e a pôr em cima antes que viesse a enxurrada", conta.
A última fotografia do acervo de José Costa é de 5 de maio de 2015. Nesse dia, pela enésima vez, ficou com o quintal, interior da casa e restaurante destruídos.
Punha chapa na porta para evitar a entrada da água
As paredes da casa de Glória Silva ainda expõem as cicatrizes das enxurradas de outrora com que nunca aprendeu a conviver. O pai de Glória nasceu ali, no 46 da Rua da Ramada, e ela também, há 71 anos. Sempre conviveram com as cheias, sempre preparados para pôr a chapa na porta de entrada de casa para diminuir a quantidade de água que invadia a habitação.
Agora, sobra "só" o processo psicológico difícil de afastar, pois ainda hoje vem à janela "espreitar para ver se vem o riacho" sempre que há uma chuva mais forte. Na cave, Glória tira o pó da placa que já não é usada há cinco anos e mostra-a, enferrujada, com dificuldade. "Agora já nem consigo pegar nela que me dói o braço", desabafa.
Na véspera de Natal de que todos se lembram, a água entrou-lhe em casa e subiu até aos dois metros, ou quinta escada, obrigando Glória a ficar presa no primeiro andar.
"Fiquei lá em cima porque não podia descer. Depois vieram os carros dos bombeiros para tirarem a água. Foi muito triste", recorda, com os olhos no chão, a fazer as contas ao prejuízo que teve: "A gente faz por ter as coisas todas direitinhas e num segundo estraga-se tudo. Vá lá que tudo acabou, se Deus nosso senhor quiser"