António Costa defendeu que para combater o populismo, um fenómeno que não é exclusivo da Europa, é preciso responder às desigualdades, como a crise no acesso à habitação. O ex-primeiro ministro reiterou que não se deve "sobrevalorizar" o resultado das legislativas, com a subida do Chega.
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António Costa afirmou esta terça-feira que as desigualdades são a causa estrutural para os populismos a que é preciso responder globalmente. "Os nossos países hoje estão muito melhores, mas o nível de desigualdade, ao longo dos últimos 30 anos, aumentou significativamente. Segundo o FMI [Fundo Monetário Internacional], em 50% dos países há desigualdade e em 90% das economias mais avançadas o grau de desigualdade está a aumentar". O ex-primeiro ministro participava no último painel com o tema "Cinco décadas de democracia: o passado e desafios do futuro" do Fórum "La Toja - Vínculo Atlântico", que decorreu na Fundação Gulbenkian, em Lisboa.
Na sua perspetiva, o difícil desafio de dar às novas gerações as condições para que possam evoluir sempre melhor do que as anteriores é sinal dessas desigualdades. Para Costa, o sentimento de "falta de futuro" é um dos que "mais alimenta os populismos", alertou, salientando em especial as desigualdades que resultam da crise na habitação em Portugal e em vários países do mundo, considerando-a um problema que terá "uma resolução demorada". Se por um lado as taxas de juro negativas que levaram os capitais a "refugiarem-se" no imobiliário e a dispararem hoje os preços da habitação, por outro lado, também as dinâmicas familiares alteraram e contribuíram para a crise atual.
"Hoje há muito mais pessoas a viverem sozinhas do que havia antes. Tudo isso significa que, apesar da população [portuguesa] no seu conjunto ser menor, a necessidade da habitação é maior", explicou. Costa assinalou ainda fenómenos sociais como a livre circulação de pessoas que levou vários países a apostarem na captação de capitais estrangeiros, como os vistos gold, ou o aparecimento de Airbnb.
13% dos portuenses vivem em habitações sociais
A crise habitacional foi pano de fundo no painel com autarcas de Lisboa, Porto e Barcelona. Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, destacou que 13% da população do município vive em habitações sociais, oferta que “resolve quase totalmente o problema dos mais pobres”, mas que não é suficiente. O autarca portuense deu o exemplo dos jovens que desejam ter uma habitação própria mas os salários da classe média não conseguirem acompanhar os valores no mercado. Moreira defendeu, por isso, que o problema não será resolvido apenas com apoios públicos. O mercado também tem de fazer parte da solução. Já Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, deixou o compromisso de dar uma cidade mais digna aos residentes "mais vulneráveis", partilhando o desejo de que o problema da falta de habitação tenha melhores dias.
Ao lado de antigos chefes de Estado de Governo espanhóis, mas também de Pinto Balsemão, António Costa começou a sua intervenção no painel ao agradecer pela "aula prática de aprender a ser ex-primeiro-ministro", o que causou uma reação cómica na sala. Para o ex-primeiro-ministro, aquilo que permitiu o crescimento do “partido populista de direita” - sem nunca mencionar diretamente o Chega -, foi o facto de os cidadãos “não terem sentido, nem no PSD, nem no PS, tração suficiente”. Mas reiterou: não se deve "sobrevalorizar" o resultado das eleições legislativas de março, uma vez que ocorreram em "circunstâncias estranhas" e o fenómeno é passageiro. "É preciso dar tempo para que as coisas retomem a normalidade", afirmou.
No diagnóstico que fez sobre a mudança política do país, Costa defendeu que, em linha com os outros países europeus, a maior fragmentação aconteceu nos últimos anos. Primeiro, mais evidente à esquerda, com o aparecimento do Bloco de Esquerda. Já a direita enfrentou o mesmo fenómeno com o surgimento da Iniciativa Liberal e do Chega, a ganhar terreno. "Continua a ser fundamental para a vitalidade da democracia que a polarização seja possível corporizar através dos dois grandes partidos de centro esquerda e do centro direita", resumiu.
Voltando ao combate aos populismos, Felipe González, primeiro-ministro espanhol durante 14 anos (na década de 80 e 90), o problema atual das democracias liberais é a falta de eficácia em responder aos problemas reais dos cidadãos. "Vivemos num mundo mais complexo, mas complexo não é pior. Pior vivíamos há 50 anos. Agora a democracia está a ser pouco eficiente a resolver os problemas negociados e vive mais para dentro a burocracia", detalhou. Por isso, a eficácia de que González fala tem sido, por vezes, "confundida com o populismo demagógico", alertou.
Por sua vez, Francisco Pinto Balsemão defendeu que "há muito trabalho a fazer em matéria de liberdade", lembrando que é a democracia que não existe "na maior parte dos povos" e é "parte minoritária" do Mundo. Já Mariano Rajoy, admitiu ser um otimista embora a ameaça dos populismos seja evidente. Em parte porque na Europa vive-se um período "de respeito pelos direitos humanos e de progresso económico e social", sublinhou "Acredito que os populismos serão derrotados", afirmou o ex-primeiro-ministro espanhol, acrescentando, no final da discussão, que o fim dos populismos será consegido com a "sensatez" e "moderação política" com a qual Espanha e Portugal têm vivido "muito bem até agora".
A ideia "tentadora" de uma Europa Federal
Numa discussão que também se virou para o futuro da Europa, Franscisco Pinto Balsemão, antigo primeiro-ministro social-democrata, considerou que a Europa “deve caminhar para ser uma federação de Estados”. Mas Costa não concorda com essa ideia e alertou que, apesar de ser “tentadora”, há exemplos da história que nos mostram os custos que teve. “Não conheço nenhum país com uma natureza federativa a partir de nações existentes e muito mais de estados-nações pré-existentes”, disse, utilizando como exemplo os Estados Unidos que para construir uma federação destruiu a população índigena que já existia no território, algo que aconteceu também no caso do Brasil.
Para Costa, não há nenhum problema onde não seja necessária a intervenção em conjunto na Europa, e esse conciência foi reforçada com crises como a de 2008 e mais recentemente a pandemia. Mas para responder a desafios globais é preciso "ter um governo do mundo" que implicaria "uma reforma das Nações Unidas", apontou. Nesse sentido, Costa reiterou a defesa da reforma do sistema financeiro internacional e de uma política de defesa do velho continente. Rajoy contribuiu com uma reflexão sobre o grande desafio que será perceber "qual vai ser a Europa no Mundo" entre as grandes superpotências. O ex-primeiro-ministro espanhol defendeu que é necessário um esforço de todos os governos para "governar bem".
Quando António Costa chegou à Fundação Gulbenkian, questionado pelos jornalistas sobre quando irá ser ouvido pela Justiça no âmbito da Operação Influencer, o ex-primeiro-ministro disse não ter novidades. Costa aproveitou para sublinhar que a partir de agora tudo o que seja relativo ao processo será tratado pelo advogado, garantindo que não falará mais sobre o caso.
A edição de 2024 do "Foro La Toja – Vínculo Atlântico", com o tema "Cinco Décadas de Demoracria em Portugal e Espanha" é a segunda que se realizou em Lisboa, uma iniciativa apoiada pela Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril e promovida pelo presidente da Fundación La Toja, Amancio López Seijas.