Nasceu, fez na terça-feira um ano, Leonor, a primeira filha de uma grávida infetada com covid-19. Especialistas pedem medidas do Governo para garantir sustentabilidade demográfica.
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Quando o país se fechou, em março do ano passado, para travar a primeira vaga da pandemia da covid-19, levantou-se a hipótese de, com isso, se assistir a um "baby boom". Mas a verdade é que a incerteza sobre a doença e a perda de rendimentos das famílias trouxe um resultado inverso, com uma quebra de nascimentos que preocupa os especialistas. Quem viveu a gravidez neste período e passou pela infeção em pleno parto, há um ano, não esquece o pesadelo. E há quem o queira registar em livro.
Só entre janeiro e fevereiro deste ano nasceram menos 3079 bebés, em relação ao mesmo período do ano passado, de acordo com dados do Ministério da Justiça, que têm por base as datas de nascimentos. Concretamente, foram 5863 recém-nascidos registados em janeiro deste ano, contra 7313 no mesmo mês de 2020. Fevereiro contou com 4723 nascimentos, menos 1629 do que no ano anterior. Mas em novembro e dezembro do ano passado, o país já tinha começado a sentir os efeitos da pandemia, com menos 3774 partos do que no mesmo período de 2019.
"Um problema seríssimo"
A maior maternidade do país, o Centro Materno Infantil do Norte, não escapou à tendência, com menos 58 nascimentos nos últimos dois meses. "Contrariamente ao que se podia especular, que durante o confinamento pudesse haver maior taxa de natalidade, isso não se verificou. Temos um problema seríssimo no país", defende o diretor, Caldas Afonso.
O geógrafo Jorge Malheiros nunca acreditou num "baby boom", porque começou a tornar-se evidente, "nomeadamente a partir do verão, a incerteza económica e sanitária". "A queda da natalidade acelera-se muito em períodos de crise, com a incerteza no futuro e falta de confiança, em que se conjugam perdas de condições materiais", explica o especialista, para quem está claro que serão necessários "pelo menos 15 anos" para inverter o envelhecimento e equilibrar a pirâmide etária. "Depende da entrada de imigrantes e número de filhos por mulher. Não há nenhuma expectativa de equilibrar o saldo natural entre este censo e o de 2031", atesta.
Vírus não ataca o parto
Desta forma, considera que a sustentabilidade demográfica deve estar nas prioridades do Governo. Entre as medidas, aponta a necessidade de "maior estabilidade nos rendimentos dos jovens", controlando situações como recibos verdes ou facilidades no arrendamento. "Estamos a falar de uma bazuca que relança a economia, mas temos que ver o relançamento pelo lado social e demográfico", entende Jorge Malheiros.
Ao nível sanitário, Caldas Afonso garante que as grávidas não precisam de ter preocupações acrescidas. Se, há um ano, o desconhecimento sobre a infeção obrigava a separar os bebés das progenitoras, é agora sabido que "o vírus não tem influência direta na normalidade do parto, nas condições de nascimento e do bem-estar para o recém-nascido".
"Há informação que demonstra que pode haver um ligeiro aumento da taxa de prematuridade, mas pode não estar relacionado com a doença em si própria, mas com toda a envolvência psicoemocional que a pandemia trouxe", conclui.
Entre a dor pelo afastamento dos filhos e a ausência dos pais no parto
Marina Bastos, de Santa Maria da Feira, foi a primeira portuguesa a viver a experiência de um parto quando estava infetada com covid-19. Seguiram-se outras mulheres, como Eunice Rodrigues, da Maia, ou Noémia Leite, de Braga. Na memória, ficam registadas todas as dificuldades, mas também as vitórias.
Psicologicamente está cá tudo
Completado um ano após o nascimento da filha Leonor, Marina Bastos, de Santa Maria da Feira, diz que a experiência do parto ainda está marcada na memória. Foi a primeira mulher grávida a dar à luz quando estava infetada com covid-19, a 16 de março do ano passado, no Hospital de S. João, mas só pegou na filha ao colo a 21 de abril, quando deixou de testar positivo à doença. O pai, José Ramalho, apenas pôde sair do quarto e juntar-se à família - que conta ainda com Matilde, a filha de seis anos - a 28 de maio.
"Psicologicamente está cá tudo", afirma Marina, recordando o "medo" do parto, numa altura em que pouco se sabia sobre o vírus. Lembra, também, o "sofrimento" por não ter abraçado Leonor, logo após o nascimento, mas também as brincadeiras à distância com a filha mais velha e a angústia do marido. "O pai teve dias muito dolorosos, porque via-me sozinha e muito cansada e não podia fazer nada", confessa, explicando que teve de recorrer a apoio psicológico.
Cada detalhe que Marina viveu até 28 de maio ficou escrito num diário que, agora, ambiciona transformar em livro. "Escrever foi a minha terapia", confidencia.
Ouvi-lo a chorar e não poder auxiliar custou horrores
Eunice Rodrigues, com 41 anos, sonhava ter "um quarteto" de meninas em casa, depois de já ter três filhas, mas o Jaime surpreendeu-a e veio trazer uma presença masculina à família. Nasceu no dia 1 de abril, mas Eunice só o recebeu nos braços quase dois meses depois. Foi uma das mães infetadas que deu à luz na primeira vaga da pandemia.
O pequeno Jaime esteve 17 dias no Hospital de S. João, até o pai testar negativo. Foi para casa, mas a progenitora só no mês seguinte pode ligar-se ao filho. "Tê-lo em casa, à minha beira, e não poder tocar-lhe foi muito castrador. Ouvi-lo a chorar e não poder auxiliar custou horrores", recorda Eunice, admitindo que "a maior satisfação" que teve, depois desse período, foi conseguir amamentar. Ainda assim, ao fim de um ano, carrega um sentimento de culpa. "Sinto que houve um abandono e tenho uma dívida para comigo e com o Jaime. Saiu do hospital numa ambulância com uma mala", lamenta. "Foi um ano de suspensão por medo. Ainda não tivemos nenhum registo de normalidade".
Estava com receio do parto
Com um filho com quatro anos, Noémia Leite e o marido, Rafael Pereira, decidiram que estava na altura de avançar para um segundo filho. A pandemia não travou a vontade, mas alterou o modo como a gravidez foi vivida, até porque, pouco antes de dar à luz a bebé Caetana, a 25 de fevereiro, a bracarense soube que estava infetada. "Chorei muito, porque o meu primeiro parto foi traumatizante e ter que ir sozinha deixou-me muito ansiosa. Estava com muito receio", conta a jovem de 32 anos, agora já refeita do susto.
Elogiando o trabalho do parteiro Tomás e da enfermeira Sara, do Hospital de Braga, Noémia assume que o parto acabou por correr bem e, sendo assintomática, teve sempre a Caetana por perto, pele a pele. O pior foi mesmo o afastamento do marido, que também tinha testado positivo à doença. "Ficou muito triste por não poder acompanhar-me. Mesmo durante a gravidez, o pai nunca pode estar em qualquer consulta. A ecografia em 4D, numa empresa particular, foi a única experiência que conseguiu viver mais de perto", recorda.