Relatório da OCDE associa declínio à exposição das condições de trabalho dos médicos e enfermeiros durante a pandemia.
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O interesse dos jovens pelas profissões de saúde diminuiu em cerca de metade dos países da OCDE, entre 2018 e 2022, um efeito da pandemia que pode ter consequências dramáticas nos sistemas de saúde dos países mais desenvolvidos. Portugal ainda rema em sentido contrário, mas especialistas ouvidos pelo JN garantem que é uma questão de tempo. Pouco tempo.
O alerta surge no recente relatório da OCDE “What do we know about young people’s interest in health careers”, que analisa o interesse dos jovens de 15 anos em seguir carreiras na área da saúde, nomeadamente Medicina e Enfermagem, com base em dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) e dados nacionais sobre as candidaturas e admissões aos cursos.
Os resultados mostram um conjunto cada vez maior de países – com os Estados Unidos, a Bélgica, o Canadá e a Finlândia à cabeça – onde decresceu o interesse pela área da saúde entre 2018 e 2022. Em Portugal, em 2022, 8,5% dos estudantes de 15 anos disseram que esperavam trabalhar como médicos aos 30 anos (6,9% em 2018) e cerca de 2% como enfermeiros (ligeiro aumento face a 2018). Apesar da tendência ainda ser positiva, o risco de o desinteresse no país aumentar está sinalizado no relatório, que aponta a redução das admissões nos cursos de enfermagem entre 2021 e 2022 como um primeiro indício.
Segundo o documento, a pandemia covid-19 teve um impacto misto junto dos mais novos. Num primeiro momento, gerou um aumento do interesse pelas profissões que salvaram milhões de vidas, mas esse interesse acabou por se esbater com a exposição das condições de trabalho muito exigentes e a baixa remuneração dos trabalhadores.
“Embora os profissionais de saúde tenham sido amplamente celebrados como heróis durante a crise, as suas experiências de stress sem precedentes, condições de trabalho difíceis, exposição a riscos para a saúde e salários relativamente baixos em algumas profissões podem ter paradoxalmente dissuadido muitos jovens de seguirem carreiras no setor da saúde”, pode ler-se no documento.
Roberto Roncon, médico intensivista do Hospital de São João, no Porto, olha para o estudo com preocupação, mas sem surpresa. “É particularmente significativo porque dá-nos uma previsão sobre o que aí vem”, diz, avisando que se trata de um “futuro muito próximo, a dois ou três anos”.
Há mais a querer emigrar
Também presidente do Conselho Pedagógico da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, Roberto Roncon interage com estudantes no dia a dia e nota que o desinteresse já existe. “A percentagem de alunos que assumem, logo nos primeiros anos do curso, que não querem seguir carreira clínica e querem sair do país é cada vez maior”, realça o médico, que também tem dedicado atenção ao tema enquanto coordenador do subgrupo para a saúde da Plataforma de Retenção de Talentos da União Europeia.
Para o bastonário da Ordem dos Enfermeiros, “a redução do interesse nas carreiras da saúde tem a ver com as condições de trabalho e a pressão que os enfermeiros têm no dia a dia, sem a devida valorização e remuneração”.
Luís Filipe Barreira nota que no SNS faltam 14 mil enfermeiros, o que acarreta “uma sobrecarga de trabalho muito grande”. Não é por acaso que, realça, “todos os anos 60% dos enfermeiros pedem declaração para poderem emigrar e exercer noutro país”.
Formar mais não resolve, é preciso valorizar
Como se contraria o desinteresse pelas profissões da saúde? Formar mais não resolve, é preciso valorizar para reter talentos. No caso dos médicos, diz Roberto Roncon, não chega pagar melhor porque os jovens querem também flexibilidade e equilíbrio entre a vida pessoal e profissional. Para os enfermeiros, urge resolver as carências no SNS e o aproveitamento das suas competências, diz a Ordem dos Enfermeiros.
Pormenores
Desequilíbrios
As raparigas têm mais interesse pelas profissões da saúde do que os rapazes. O número de homens admitidos nos cursos de Enfermagem é muito baixo (17% em 2022) o que potencia desequilíbrios de género.
Dados inflacionados
O relatório da OCDE alerta que os dados de Portugal relativos a admissões nos cursos podem estar inflacionados porque contabilizam candidaturas a vários cursos em vez de candidatos únicos.
Médicos licenciados
Segundo a OCDE, em 2022 licenciaram-se 1670 médicos em Portugal, uma variação pouco significativa face a 2015 (2%).