Nasceram no meio rural, nos arredores do Grande Porto, entre plantações de milho e a criação de vacas e desde crianças acalentam a ambição de aprimorar o amor pela terra passado pelos pais, que também seguiram o caminho desbravado pelas gerações anteriores. Carlos Neves, Isabel Maia Gonçalves e Rosa Moreira vivem felizes no campo e não se imaginam a fazer outra coisa. São o rosto da Agricultura 2.0 e provam que este setor primário - que muitos optaram por abandonar -, quando aliado às novas tecnologias, é um terreno fértil, que continua a dar frutos.
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"Muito nevoeiro informativo"
Carlos Neves, 47 anos, é um comunicador nato e fala com tanta paixão daquilo que faz que rapidamente convence que o futuro continua a passar pela agricultura. "Sou um agricultor normal!", começa por dizer, soltando uma gargalhada. Um agricultor que, nas horas vagas, gosta de dar a conhecer as agruras e conquistas da sua profissão na página que criou no Facebook, "Carlos Neves agricultor", onde conta com dez mil seguidores.
Encontramo-lo logo após o almoço, vindo de regar o milho, numa daquelas semanas em que o termómetro subiu para lá dos 30 graus, sem vento. Coisa pouco habitual em Árvore, Vila do Conde, onde tem a Quinta do Sinal, dedicada à criação de vacas leiteiras e ao cultivo de milho e azevém, tal como o pai fazia.
No dia anterior, tinha dado conta na rede social que eram quase "11 da noite e ainda estavam 30 graus", tendo ido ao campo ver as regas pela última vez. "Por estes dias, a nossa luta é acudir ao milho que está a murchar por falta de água", observa.
Carlos confessa que o à-vontade da escrita vem "desde os 15 anos", quando começou a colaborar com a revista "Mundo Rural". Seguiram-se depois várias crónicas num semanário local, até à experiência maior de pertencer à Associação dos Produtores de Leite de Portugal, de que é agora secretário-geral. Com um curso em Ciências Sociais, "depois de ter frequentado a Escola Agrícola até ao 12.º ano", revela que lhe dá "gosto comunicar", até porque o seu objetivo "é chegar diretamente ao consumidor", esbatendo, assim, "muito do nevoeiro informativo". Talvez por isso se diga saudoso "do tempo em que o programa "TV Rural" dava em "prime time" ao domingo".
Admirador confesso de outros agricultores que também dão a conhecer o seu trabalho na Internet - como a página "Honest Farming" ou "Dairy Carrie", ambas dos Estados Unidos -, Carlos defende que "a única hipótese do pequeno agricultor é crescer, apostando em equipamentos mais modernos". Desta inovação constam não só tratores com ar condicionado, mas também robôs de ordenha, ventiladores automáticos na vacaria e até uma escova automática para as vacas se coçarem.
Adora vacas e faz tudo por elas
"Agricultora, veterinária e mãe", assim se dá a conhecer no Facebook Isabel Maia Gonçalves, que em 2019 deu seguimento ao negócio de família de criação de vacas leiteiras e de plantação de milho nos arredores do Porto. As histórias através das quais a também professora da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro revela o dia a dia da "cow person" [pessoa que adora vacas] incluem a animada presença de Olaf, um cão da raça border collie, que rói "curgetes, ameixas, galinhas, ovos, morangos, pão caseiro, folar, carregadores de telemóvel e cabos da fibra ótica".
"No outro dia, tinham desaparecido uns pedómetros com chip [colocam-se nas vacas com a finalidade de registar os seus movimentos] e fui descobrir que era o Olaf que andava com eles na boca. Ou seja, andava a brincar com 400 euros", conta a veterinária, a rir.
Isabel, 40 anos, aborda também temas mais sérios, desmistificando muitas "teorias da conspiração", garantindo que "o leite quando sai da vaca é branco".
Tem consciência de que a página (com sete mil seguidores) "podia crescer muito mais", mas trata-se "apenas de um hobby", através do qual tenta "passar uma imagem real e positiva" da sua profissão. Ainda assim, confessa que leu sobre marketing digital.
Os olhos da menina que "nunca" teve dúvidas de que "um dia iria ser agricultora" - "muito influenciada" pela vivência dos pais, "um engenheiro agrónomo e uma agricultora" - brilham com mais intensidade quando fala da obra recente na vacaria, dotada "com dez câmaras de vigilância", pelas quais consegue acompanhar em tempo real, "no telemóvel ou no computador", todos os movimentos das vacas. Foi graças a esta tecnologia que, na noite da consoada do ano passado, a veterinária deu conta no Facebook que uma vaca estava em trabalho de parto, obrigando-a a sair de casa. O trabalho não quer saber de datas festivas.
Mas Isabel relata, animada, outras mais-valias, como a "escova automática das vacas, que faz grande sucesso", e o sistema automático de controlo de temperatura e da luz. Não existem interruptores para ligar as luzes no pavilhão nem para ligar as ventoinhas e, quando a temperatura sobe demasiado, as vacas também têm oportunidade de se refrescar, durante um minuto, nos chuveiros junto à manjedoura". "As vacas leiteiras toleram muito mal o calor", explica Isabel Maia Gonçalves.
Até o "software da ordenha tem uma aplicação que faz com que em qualquer sítio seja possível ver informação atualizada. Todas as semanas recebo imagens de satélite dos campos semeados, o que permite detetar zonas mais secas ou com algum ataque de uma praga mais cedo", referiu a agricultora e veterinária.
Em setembro, "serão instalados os painéis fotovoltaicos, que vão fornecer energia para alimentar vários equipamentos", conta Isabel Maia Gonçalves.
A conversa animada pela presença de Olaf, junto às vacas que estão no pasto, é interrompida. O dia já vai longo, e Isabel, que se diz "workaholic' [viciada em trabalho], tem ainda uma ordenha para fazer...
rosa moreira
A cientista agrícola
Aos 29 anos, Rosa Moreira, natural de Retorta, Vila do Conde, licenciada em Ciências e Tecnologia do Ambiente pela Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, está a iniciar o doutoramento em Biotecnologia, na Universidade Católica do Porto, com "um ensaio" numa plantação de feijão, com "quatro métodos de tratamento diferentes para verificar qual o mais indicado no controlo de plantas infestantes". O ensaio acontece no terreno lá de casa, mesmo ao lado da plantação de milho do pai, agricultor.
O estudo servirá para "tentar provar que as leguminosas, como o feijão, podem ser uma boa alternativa, com métodos de plantação mais amigos do ambiente". Rosa revela que um dos seus objetivos "é, um dia, dar aulas numa universidade".
Enquanto isso não acontece, a investigadora é também autora de um site. Ali, é "A cientista agrícola" e, usando toda a sua experiência no ramo, começou por dedicar-se à escrita de artigos. Rosa conta que "com tanta informação técnica, o desafio foi aproximar as pessoas da agricultura, com uma linguagem descontraída".
Ao fim de meio ano, os seus conteúdos tinham já "40 mil visualizações e 60 mil seguidores". De resto, confessa: a "pandemia e a exigência do teletrabalho vieram dar uma ajuda" ao crescimento do projeto, já que tinha "mais tempo" para se dedicar.
A investigadora recorda ainda que muitos dos seus textos "serviram de inspiração para muitas pessoas - como advogados e médicos -, mudarem de emprego e dedicarem-se inteiramente à agricultura".
Hoje em dia, Rosa disponibiliza cursos online: "são oito módulos ao longo de dois meses", com uma aula ao vivo por semana, que costuma acontecer, "normalmente, às quintas-feiras, às 20.30 horas".
No curso, no qual fornece "sebentas" aos alunos, a investigadora aborda temas como pragas, botânica agrícola ou truques para regar melhor as plantações. O sucesso é tal que o site "é visitado mensalmente por 700 mil pessoas", sublinhou.
À conta deste sucesso e de tantas solicitações, Rosa admite que "esta atividade não é mais um hobby", assumindo-a "como um segundo emprego".
Crónicas
Três ex-ministros da Agricultura - António Serrano, Arlindo Cunha e Assunção Cristas - foram convidados por Carlos Neves para escrever o prefácio do seu primeiro livro, "Desconfinar a agricultura - Crónicas agrícolas do prado ao prato".
Apresentação
O livro vai ser apresentado no dia 20, às 15 horas, durante a Feira de Gastronomia de Vila do Conde, e reúne os textos que o autor escreveu entre 2019 e 2021.