As crianças e jovens institucionalizados vão passar a poder dar voz às suas preocupações e necessidades junto do Governo numa assembleia e num conselho nacional consultivo. A novidade surge na sequência das novas regras para as casas de acolhimento para crianças e jovens em risco, publicadas esta sexta-feira.
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A nova portaria que requalifica o sistema de acolhimento residencial prevê a criação de uma assembleia e de um conselho nacional consultivo de crianças e jovens acolhidos. Cada casa de acolhimento terá um jovem a representá-la no conselho consultivo, que será presidido pelo membro do governo responsável pela pasta da Solidariedade e Segurança Social - uma decisão que deverá passar pelo novo Executivo, que irá sair das eleições legislativas de março. A assembleia deverá reunir-se, pelo menos, uma vez por ano, mas as reuniões do conselho nacional irão acontecer com maior regularidade, pelo menos, uma vez a cada quatro meses, ou seja, três vezes por ano, de acordo com o que está previsto na portaria.
Segundo o diploma, o conselho nacional deve ser constituído por 30 crianças e jovens em situação de acolhimento residencial que, no seu conjunto, representem as cinco regiões do país. É da responsabilidade de cada centro distrital da Segurança Social propor à tutela seis crianças ou jovens para integrar o novo órgão consultivo já nos próximos 60 dias, uma vez que o prazo para a designação começa a contar da data da publicação da portaria, ou seja, a partir de hoje. O apoio logístico e financeiro necessário à realização destas reuniões fica nas mãos da Segurança Social, com a participação da Santa Casa da Misericódia de Lisboa e a Casa Pia de Lisboa.
Durante o processo de elaboração da portaria, a ministra Ana Mendes Godinho esteve junto dos jovens acolhidos e ex-acolhidos que contribuíram para fazer um diagnóstico da realidade que hoje existe nas casas de acolhimento. Ao JN, a governante sublinha que o principal objetivo da assembleia de jovens "é garantir uma participação muito ativa e uma leitura permanente do que está a acontecer no terreno".
Desconstruir mitos
Leonor (nome fictício), 18 anos, foi uma das jovens que se participou em três reuniões que decorreram no distrito da Guarda, a primeira ainda em janeiro deste ano. "Nós já nos começámos a juntar na Guarda, com praticamente todas as instituiçõe da zona. Numa das reuniões com a sra. ministra, falámos que a assembleia seria uma possibilidade se nós achássemos interessante os encontros que temos feito. Se fosse uma experiência bem-sucedida, porque não acontecer a nível nacional?", explica a jovem sobre a criação destes novos órgãos consultivos. Agora, o bom exemplo da Guarda pode inspirar as outras casas de acolhimento "a seguirem o mesmo caminho".
Na hora de partilharem em grupo as expectativas que cada um tem para seu o futuro, "muitas das respostas dos jovens foram estudar, ir para a universidade, ter uma casa e um bom emprego", sublinha Leonor, acrescentando que este exercício ajudou-a a desconstruir ideias pré-feitas sobre a sua situação e de outros milhares de jovens.
"Ainda há muito aquela ideia de que os jovens institucionalizados não querem saber dos estudos. Contra mim falo que não tinha a perceção de que tantos jovens acolhidos têm intenções de ir para a universidade, tirar uma licenciatura, e se calhar mais do que isso", comenta.
A jovem tinha 12 anos quando foi institucionalizada pela primeira vez numa casa de acolhimento no Porto, cidade onde nasceu. Até que há três mudou para uma casa de acolhimento só para raparigas em Manteigas. Entrou em setembro na universidade, com a ajuda de uma bolsa de estudo. Com a garantia da figura de um tutor que vai passar a acompanhar de forma próxima o seu plano individual de intervenção, Leonor partilha sentir-se "mais segura" quanto ao seu futuro.
A portaria que estabelece as novas regras de organização e funcionamento das casas de acolhimento foi publicada esta sexta-feira em Diário da República, pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, com vista a uma intervenção mais personalizada e específica à situação e necessidades de cada crianças e jovens até aos 25 anos. Os dados mais recentes, relativos ao final do ano 2022, mostram que estão à guarda do Estado 6347 crianças e jovens, a maioria fica mais de 3 anos nas instituições.
A legislação prevê, entre outros, limitações ao número de crianças e jovens por unidade residencial, sendo que passam a poder acolher entre sete a 15 consoante, a criação de planos individuais a cada criança e jovem que passa a ter um interlocutor de referência e a atribuição, por exemplo, de uma bolsa mensal aos jovens acolhidos que frequentem a universidade.
Embora da sua experiência tenha sido acolhida em casas onde andavam "sempre à volta dos dez ou 13", Leonor encara também com bons olhos a redução do número de crianças e jovens debaixo de um só teto. "Quantos mais formos há mais confusão e não nos conhecemos tão bem uns aos outros, nem criamos uma ligação tão grande. Ao sermos menos, vivemos mais em harmonia, somos mais unidos e o ambiente é mais familiar".
Além do "respeito pela individualidade" das crianças e jovens, João Pedro Gaspar, presidente da Plataforma de Apoio a Jovens (Ex)acolhidos (PAJE), aponta também como uma mais valia da portaria o facto de todas as casas de abrigo poderem passar a ser mistas. "É uma luta muito antiga que nós tínhamos para não separarmos fratrias. Não faz sentido que ainda tenhamos um irmão numa casa de acolhimento e uma irmã noutra a dezenas de quilómetros só porque nas casas mistas as vagas são muito estritas", aponta o responsável.
A legislação surge no âmbito do novo programa de Bases para a Qualificação do Sistema de Acolhimento de Crianças e Jovens, lançado em junho deste ano, em linha com as metas que o Governo se comprometeu a atingir até 2030. Além de almejar que nos próximos anos a taxa de desinstitucionalização reduza em 80%, passando de seis mil para 1200 crianças e jovens em acolhimento residencial, o Executivo quer garantir um aumento em 50% o número de respostas em meio natural de vida, a integração de 90% das crianças até aos 12 anos, com medida de colocação, em famílias de acolhimento e de 90% dos jovens, com medida de promoção, em respostas promotoras de autonomia, e que a totalidade das casas de acolhimento existentes no país se encontrem qualificadas face às necessidades efetivas dos jovens.
