Quando convidado para participar como monitor na viagem do "Creoula" de 2011 e a navegar pelos mares de Portugal e Espanha, fui incumbido de proferir uma palestra.
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O primeiro tema que me ocorreu foi "navegação". Claro que não pretenderia ensinar aos navegantes do Creoula como se navega, função dos integrantes da marinha portuguesa que há muito a dominam, fato que levou os portugueses à descoberta e "colonização" do Brasil. E justamente por ter nascido no Brasil, solicitaram que eu falasse sobre meu país, e a primeira coisa que me ocorreu foi falar do "caos". Pronto! Já havia reunido todos os ingredientes temáticos que necessitava para fazer uma intervenção que os focasse de modo sintético e dialético.
O primeiro insight sobre o tema navegação remeteu-me a um poema de Fernando Pessoa, que na primeira estrofe diz: "Navegar é preciso; viver não é preciso." O termo preciso aceita duas acepções que aqui nos interessam. A primeira o entende como algo necessário, indispensável e imperioso, aplicando-se diretamente aos navegantes do Creoula e aos das embarcações Santa Maria, Nina e Pinta, que saíram de Portugal supostamente em direção às índias para cruzar o Atlântico de encontro aos índios da terra brasilis - denominação de origem do que posteriormente seria denominado Brasil.
E foi essa imperiosa necessidade de navegar que inaugurou um importante ciclo da "globalização", tema que nos dias de hoje resulta cada vez mais amplo e pendente de atualizações por estar correlacionado com as evoluções das tecnologias e das ciências: no âmbito da comunicação e dos transportes, a globalização estabeleceu novas relações entre tempo e espaço e alterou definitivamente as tradicionais noções de distâncias, barreiras e fronteiras; no âmbito econômico, ao invés de promover a desejável igualdade dos direitos humanos e do acesso aos bens materiais e imateriais, a globalização reafirma antigos modos de colonização baseados na transposição das riquezas da colônia para a "Metrópole" (no sentido de mater + polis, ou "cidade-mãe", como historicamente fizeram o reino de Espanha na América Latina e o de Portugal na África e no Brasil), aumentando o desnivelamento entre os países centrais e as colónias periféricas e promovendo a homogeneização da cultura, dos costumes e dos procedimentos produtivos à escala mundial.
A segunda acepção do termo "preciso" está vinculada à precisão, exatidão e perfeição, o que se opõe ao caos e, portanto, se aplica tanto à segurança exigida em navegação quanto à justificativa dos povos colonizadores. Para os costumes europeus, os modos de vida dos ameríndios eram inaceitáveis: viviam sem roupas; não estavam sujeitos aos dogmas cristãos; não conheciam revoluções (o papel de cada sujeito na organização social interna às tribos não era motivo de revoltas); e não valorizavam os metais e as pedras preciosas abundantes no continente americano até então. Para solucionar aquele caos (e atender aos interesses insaciáveis do reino) decidiram "civilizá-los", organizá-los e catequizá-los, escravizando-os à vida material e aos mitos cristãos, privando-os da liberdade e impondo-lhes o convívio com sentimentos de culpabilidade e competitividade. Do lado dos ameríndios, o caos se instalou após a chegada dos europeus, inicialmente recebidos como salvadores, mas rapidamente se converteram nos autores do maior genocídio que a história humana conheceu. Dezenas de milhões de ameríndios foram dizimados conscientemente (por fatores como escravidão, guerras, envenenamento de mananciais, estupros etc.) ou por transmissão de epidemias desconhecidas e contra as quais não tinham defesa, derivadas do mero contato (gripe, sarampo, peste bubônica, cólera, tifo e difteria) ou que foram intencionalmente introduzidas (varíola e sífilis).
Mas não quero limitar este texto a uma visão pessimista, prefiro impregná-lo de uma visão positiva e otimista retornando ao poema de Pessoa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Por isso, convido a todos a navegarmos em direção ao "caos", que embora possa ser entendido como entropia (medida do grau de desorganização que pode levar à falência de um sistema), felizmente admite, também, o sentido positivo de "origem", como algo de caráter informe, não organizado, ilimitado e desmedido a praticado como estado onde todas as coisas surgem. Viver não é preciso, pois mesmo que não seja imprescindível para alguns, certamente é impreciso e imprevisível para todos! Por isso, convido a todos a construirmos um novo caos, que precede à criação e propicia a gênese, e uma nova globalização, baseada na equidade e na igualdade de direitos para uma vida digna extensível a toda a humanidade.