Deixaram estudos para ajudar em casa ou trabalhar no têxtil: mães regressam à escola
Deixaram os estudos para ajudar em casa ou trabalhar no têxtil. Programa da EPIS em Sande, no Marco de Canaveses, permite às mães retomarem percurso escolar.
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Deixaram os estudos ainda crianças. Para ajudarem nas tarefas domésticas e no campo. Seguiram para as fábricas. Casaram. Foram mães. Os maridos emigraram. Assumiram a gestão da casa. A educação dos filhos. E é através deles que regressam agora à escola. Para prosseguirem estudos. Por elas. Por eles. Combatendo determinismos.
Não falamos num passado muito longínquo. Num pequeno país costurado em territórios múltiplos. De mães, mas acima de tudo mulheres, hoje com 30, 40 anos de idade. Estamos na EB 2/3 de Sande, no Marco de Canaveses. Escola TEIP – Territórios Educativos de Intervenção Prioritária com 663 alunos, mais de metade beneficiários de Ação Social Escolar. Inserida numa sub-região, o Tâmega e Sousa, que, nos tempos idos, apresentava das mais altas taxas de abandono escolar, lembra ao JN Graça Magalhães, assistente social naquele agrupamento. Note-se que, ali, a taxa de escolarização dos 15-17 anos passou de 30,2%, em 1991, para 98,3%, em 2021.
A direção da escola agarrou, com determinação, o projeto Mães EPIS – Empresários Pela Inclusão Social, que visa aumentar as qualificações e empregabilidade de mães e pais. Em Sande, a maioria das mães, dos pais, jovens, tem entre o 6.º e o 9.º anos, explica Graça Magalhães. Lembrando que a escolaridade das mães é um preditor do sucesso dos filhos. Pegou nas listagens do agrupamento, foi ver que mães “tinham escolaridade abaixo do 12.º ano e não estavam a trabalhar, porque a formação é diurna”, e pôs-se em campo. Para as capacitar.
Carla Pereira chegou a este programa através de um contacto do diretor de turma da sua filha do meio, que frequenta o 8.º ano naquela EB 2/3. Ela, que sempre gostou da escola, achou a “oportunidade ótima”. A certificação de competências assenta na história de vida destas mães, ali trabalhadas por Lisete Meneses, técnica de Orientação, Reconhecimento e Validação de Competências do Centro Qualifica da Escola Secundária do Marco de Canaveses. “Não têm o reconhecimento por quem as rodeia. Quero que ela se valorizem”, diz-nos.
Num orgulho que brilha em Carla. Mais nova de nove irmãos, quando terminou o 6.º ano trabalhava a “mãe no campo e o pai no estrangeiro”. “Precisava de mim na lida da casa, na lavoura”, recorda esta filha que interrompeu os estudos para ajudar a mãe, na altura a precisar também de cuidados. Quando “sonhava ser veterinária”.
Trocou o sonho pela têxtil, como tantas mulheres naquela zona. Quando a filha mais nova nasce, o marido emigra, encontrando-se ainda no Luxemburgo, e, “como não valia a pena pagar a uma pessoa para olhar pelos dois miúdos”, ficou em casa – como se fosse esse o termo a aplicar às mães cujo dia hoje se celebra.”Não fui infeliz, fui muito feliz, fui vivendo assim”.
“Achei que não era capaz”
Aos 43 anos, Carla tem agora o 9.º ano. “Adorei. Tive um bocadinho de dificuldade, porque achei que não era capaz, tinha que escrever bastante”. Agradece a ajuda de professores e colegas. Recorda o Inglês: “Adorei”. E fala da filha “muito orgulhosa”. E do impacto. Dos impactos. “Tirando o 9.º ano consigo compreendê-la melhor”. Num trabalho que lhe “levantou a autoestima: sair de casa, arranjar-me, conviver com pessoas”. Sente-se “mais valorizada”. E o passo seguinte é o 12.º ano.
E é esse o foco de Lisete Meneses. A valorização. Porque a maior parte “não teve possibilidade de estudar devido à condição financeira dos pais, que precisaram delas para as colocar no mercado de trabalho”. O denominador comum. Tal como o isolamento. “É um meio sem grandes atividades de caráter cultural, têm os maridos emigrados e estão sozinhas em casa com os filhos. Queremos tirar as mães de casa”, observa Graça. Secundada por Lisete, que explica que a “motivação maior é poder ajudar os filhos” com os trabalhos da escola. “Ai, o meu filho estava a dar isto”. Falando a mesma linguagem.
E é por isso que, aos 34 anos, Raquel Magalhães ambiciona chegar ao 12.º ano. “Foi a dra. Graça que ligou. Ainda estive para não fazer. Mas decidi tentar”. Acabou por não ter grandes dificuldades. Porque às vezes o mais simples é o mais certeiro. “O que não sabia perguntava”. A história de vida não difere muito da de Carla. E de tantas outras mães, mulheres, por esse país fora. Tirando a interrupção do estudos. Numa altura em que não se falava de “bullying”, Raquel deixou a escola no final do 5.º ano. “Era muito tímida. As mais velhas, repetentes, ameaçavam-me. Apanhei medo e nunca mais fui à escola”.
Em casa, ajudou a “mãe nas lides domésticas enquanto ela ia para o quintal”. Aos 17 anos vai para uma têxtil, “sem descontos”. Aos 20 engravida do primeiro de três filhos. Faz o 6.º ano pelo centro de emprego. Chegou agora ao 9.º e que ter a escolaridade completa. “Foi uma experiência boa” e os “filhos ficaram muito contentes”, diz Raquel. “Uma até dizia se levava mochila”. Mas mais do que mochila, esta(s) mãe(s) são marsúpio. Porque, como escreveu Manuel António Pina, a “Ana quer nunca ter saído da barriga da mãe”.
Natalidade
Portuguesas têm menos filhos
Em 2024, e pelo segundo ano consecutivo, os bebés filhos de mãe portuguesa voltaram a diminuir. Num ano em que a natalidade inverteu a tendência de crescimento, iniciada em 2022 depois das maternidades adiadas pela pandemia, fechando abaixo dos 85 mil. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, os nados-vivos de mães com naturalidade estrangeira valem já um terço da natalidade nacional, mais do que duplicando na última década.
EPIS já chegou a 160 beneficiárias
O projeto Mães EPIS nasceu, há três anos, pelas mãos desta associação em resposta a um desafio lançado por Jorge Nunes, então diretor da escola Braamcamp Freire (Odivelas), hoje presidente da junta da União de Freguesias de Pontinha e Famões. Capacitar mães e pais, aumentando as suas qualificações. Já chegou a 160 beneficiárias (porque a larga maioria são mães). E está a aberto a todas as escolas. De forma gratuita.
O resumo é feito ao JN por Marcelo Formosinho, coordenador de programas da associação. Porque as Mães EPIS cruzam-se com os Mediadores para o Sucesso Escolar. Explicando. Muitas das mães que viram as suas competências certificadas têm também os seus filhos abrangidos por aquele projeto que visa promover o sucesso escolar. Porque, como já se disse, a escolaridade das mães prediz o sucesso dos filhos.
Mas não só. “São as mães que supervisionam e monitorizam o estudo, numa relação direta com o modelo de comportamento”, explica o psicólogo. Pelo que se o primeiro objetivo do programa “é capacitar famílias”, o segundo “é promover o sucesso escolar dos filhos”.
Mais capazes
Feito o levantamento – como Graça fez, em Sande – entram em campo os mediadores, que “incentivam os pais a definirem objetivos a curto prazo”. Com “um acompanhamento personalizado, um plano de trabalho, dando a estas famílias motivação para garantir que se mantêm no programa”. Que, ainda em fase piloto, chegou a 160 beneficiárias (cerca de três dezenas em Sande).
Do lado da certificação, diz Lisete Meneses, trabalha-se em quatro campos: Cultura e Língua, Matemática e Ciência, Cidadania e Empregabilidade, Tecnologias. “Áreas que têm que ser colocadas em evidência na história de vida”. Sem avaliações. “Porque não há uma vida melhor do que a outra”. Num laço que não termina com a validação. São convidadas para formações. Participam em visitas de estudo. “Para não perderem a vontade de continuar a apostar nelas”.
E vontade é o único requisito para entrar nas Mães EPIS. “Um diretor que queira ter este programa é só querer. Não tem que pagar. A EPIS garante supervisão”, diz o responsável. Que tira o chapéu à dedicação destas mães, “quando têm que ceder à necessidade de interromper a formação para aceitar um trabalho temporário para colocar comida na mesa para os seus filhos”. Mães que se veem, agora, “mais competentes, mais capazes”. Sendo que, como diz Lisete, quem sabe gerir “50 a 60 euros para orientar a família” é um capaz m(ai)usculado.