Dermatologista do Santa Maria codificou as próprias cirurgias mais de 350 vezes

O dermatologista intervinha em todas as fases do processo: consulta médica, proposta cirúrgica, cirurgia e codificação
Foto: Arquivo
O dermatologista que ganhou mais de 700 mil euros em três anos de cirurgias adicionais no Hospital de Santa Maria propôs, aprovou e codificou as suas próprias cirurgias mais de 350 vezes. Terá, também, marcado consultas para os pais sem a referenciação prévia obrigatória no SNS.
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Segundo o relatório da Inspeção-Geral da Saúde (IGAS), a que a Lusa teve hoje acesso, a segregação de funções era praticamente inexistente no processo SIGIC (sistema de inscritos para cirurgia) do serviço de Dermatologia de Santa Maria (Lisboa) e apenas 1% das propostas cirúrgicas entre 2022 e março deste ano não foram emitidas e aprovadas pelo mesmo médico.
Os dados recolhidos pela IGAS indicam que o médico dermatologista visado (Miguel Alpalhão) emitiu a proposta de cirurgia, aprovou-a e codificou o ato - o que juntamente com a severidade do problema define o preço a faturar - em 193 ocasiões no ano passado, 85 em 2023 e 78 em 2022.
A IGAS recorda que existiu um alerta, em 2022, por parte da pessoa responsável pela administração da área relativamente a desvios na produção cirúrgica adicional no Serviço de Dermatologia, mas relativamente à atividade do médico visado (Miguel Alpalhão) não foi feito qualquer sinal de alarme, nem no que se refere à quantidade de cirurgias, nem aos valores pagos e recebidos, "embora tal fosse sempre do conhecimento do diretor do serviço".
O médico, que está vinculado à Unidade Local de Saúde de Santa Maria por contrato individual de trabalho, está entre os primeiros elementos do serviço de Dermatologia a realizar cirurgia adicional e era ainda interno do 4.º ano de formação específica quando iniciou a atividade.
Segundo o relatório da IGAS, o dermatologista intervinha em todas as fases do processo: consulta médica, proposta cirúrgica, cirurgia e codificação.
A inspeção-geral concluiu ainda que de 2021 ao primeiro trimestre deste ano, o valor pago pela produção adicional (para reduzir listas de espera) do Serviço de Dermatologia é "praticamente o quádruplo do valor atribuído ao Serviço de Cirurgia Vascular, que é o segundo do conjunto do top 20 dos profissionais que maiores remunerações tiveram em produção adicional.
Nos 10 primeiros lugares desta lista, oito são do serviço de Dermatologia e Miguel Alpalhão representa 15% do valor ganho pelo top20.
Pela produção adicional (fora do horário de trabalho), o dermatologista em causa recebeu entre 2021 e o primeiro trimestre deste ano 714.176 euros, mais de 450 mil dos quais no ano passado.
O médico realizou, segundo os dados da IGAS, 64 cirurgias em produção adicional em 2021, 113 em 2022, 86 em 2023, 236 em 2024 e 17 no primeiro trimestre deste ano. Esteve ausente ao serviço 115 dias em 2022, 178 em 2023, 90 em 2024 e 49 no primeiro trimestre de 2025.
Já com este concelho de administração, liderado por Carlos Martins, numa decisão de 15 de agosto de 2024, o dermatologista em causa deixou de ser codificador do serviço, com efeitos a setembro de 2024.
A IGAS refere ainda que no período em análise não era clara a diferença entre o conceito de pequena cirurgia (que dispensa bloco operatório, ajudante, monitorização e recobro e não tem codificação clínica nem entra na Lista de Inscritos em Cirurgia) e de cirurgia de ambulatório, que é programada, o doente é admitido e tem alta até 23 horas depois.
Nas declarações que fez à IGAS, o médico disse que a sua codificação "respeitou sempre as boas práticas", que "até esta polémica todos os colegas do serviço procediam da mesma forma e segundo as mesmas instruções" e que "não havia informação do que seria pequena cirurgia versus cirurgia de ambulatório".
Tendo presente a informação que lhe tinha sido recentemente transmitida, o médico não excluiu que algumas cirurgias de ambulatório possa eventualmente ser consideradas como pequenas cirurgias.
O próprio diretor de serviço declarou que só naquela altura tinha tido conhecimento "de tal definição" (pequena cirurgia) dizendo que, se soubesse antes, não teria proposto a atividade em adicional, que se fazia em bloco operatório e nunca em sala de pequena cirurgia, gerando assim GDH (sistema de classificação de doentes fundamental para a gestão do financiamento) e sujeita a codificação.
Uma vez que o dermatologista não é funcionário público, o processo de inquérito foi arquivado, mas para a IGAS definiu que deverá elaborada uma informação sobre a eventual responsabilidade financeira nos processos relativos aos pagamentos indevidos, o que poderá levar à devolução de verbas recebidas indevidamente.
O documento foi enviado ao Ministério Público.
Marcou consulta para os pais
O relatório conclui, também, que Miguel Alpalhão marcou as consultas de dermatologia para os seus pais sem que houvesse prévia referenciação, seja pelo centro de saúde ou outra unidade.
Além disso, fez as próprias propostas cirúrgicas e as cirurgias de excisão, considerando em ambos os casos que se tratava de situações muito prioritárias pelas condições clínicas particulares dos doentes, segundo a IGAS.
A IGAS considera que a atuação do profissional de saúde violou o "principio de segregação de funções" e recorda que os dois episódios custaram em produção adicional SIGIC (sistema de inscritos para cirurgia) 8632 euros, dos quais 5524 foram pagos ao médico.
Por este motivo, a Unidade Local de Saúde de Santa Maria instaurou-lhe um processo disciplinar, que ainda está na fase de defesa, pretendendo a IGAS saber do desfecho do caso.
Em sua defesa, o médico declarou que a proposta que fez estava de acordo com os procedimentos em vigor, que o agendamento não teve irregularidades processuais e que as consultas foram marcadas como extra, na sua agenda, não tendo retirado a vez a nenhum outro doente.
Disse ainda que mais de 50% das primeiras consultas da ULS acumuladas a maio deste ano foram marcadas sem referenciação externa ou interna, uma realidade que considera infeliz e ditada por uma "escassez gritante de recursos humanos".
