Os portugueses residentes em Wuhan chegam amanhã a Portugal, vindos da região chinesa onde eclodiu o surto do coronavírus. A esses 16 emigrantes estão já destinadas duas salas de isolamento voluntário, no Porto e em Lisboa.
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Mas há passageiros que estão a deixar a China rumo aos aeroportos nacionais em voos com diversas escalas sem qualquer controlo da Direção Geral da Saúde (DGS).
O JN falou com vários cidadãos que já chegaram de outras regiões chinesas nos últimos dias ou estão para chegar, sem estar devidamente sinalizados pelas autoridades de saúde. Entre os que já cá estão, um deles veio de Pequim e não foi "testado à chegada". Está agora "numa casa de família" por iniciativa própria, à espera que passem os 15 dias de quarentena.
´Hoje à noite chegam a Portugal, num voo comercial vindo de uma capital europeia, alguns portugueses que vivem a mais de 600 quilómetros de Wuhan, numa cidade "onde há uma dezena de infetados". Conseguiram rumar num voo interno chinês a Pequim e dali para uma capital europeia, que tem ligações com um aeroporto nacional.
Confrontada pelas medidas que estão previstas para estes casos, desde terça-feira, a DGS tem-se mantido em silêncio.
"Julgo que não estarão a ser feitos testes", disse André Teives, presidente do Sindicato dos Técnicos de Handling de Aeroportos. Apesar de apontar que "é muito fácil ver a proveniência dos passageiros, no sistema informático", o sindicalista admitiu "testar os passageiros com origem na China implicaria atrasos e aeroportos saturados, um enorme problema de logística".
Duas desistências
Os 16 portugueses que vão ser resgatados de Wuhan começam a ser recolhidos por uma carrinha da embaixada portuguesa hoje às 17 horas [nove da manhã em Portugal] e rumam ao Consulado da França naquela cidade. Ali irão ter um primeiro contacto com autoridades de saúde, revelou, ao JN, Miguel Matos, um dos cidadãos que pediu para ser repatriado.
No grupo inicial de 18 pessoas houve duas que desistiram de vir: um português também com cidadania australiana, que receia perder o emprego com uma longa ausência, e um outro, que é casado com uma cidadã brasileira. Como a mulher não será repatriada, esse português fica em solidariedade.
Antes do embarque no A380 da portuguesa Hi Fly, que partiu ontem de Beja, os portugueses com os outros europeus irão ser ser testados. Se tiverem febre não podem viajar. Refira-se ainda que não é líquido que a aeronave possa levantar na hora prevista - ontem, a China não permitiu a partida de um voo britânico que resgatou 200 pessoas.
O voo da Hi Fly pousará na Base da Direção Geral de Segurança Civil e de Gestão de Crises da França, em Marselha, adiantaram, ao JN, fontes ligadas à Proteção Civil portuguesa. Dali, os portugueses serão trazidos num C-130, com uma equipa médica a bordo. São esperados amanhã em Figo Maduro.
Sem médicos suficientes
"Cada um desses cidadãos terá uma consulta com autoridade à chegada, que lhe fará um inquérito epidemiológico e a história clínica recente, para garantir que qualquer suspeita será encaminhada de imediato", disse, ontem, a ministra da Saúde, Marta Temido.
O JN apurou que caso aceitem submeter-se a quarentena, os portugueses poderão dividir-se pelo Hospital Militar, no Porto, e pelo terceiro piso do edifício Rainha D. Amélia, no Pulido Valente, em Lisboa.
"Não está a haver restrições financeiras para este surto. O problema é que não há pessoal médico experiente suficiente", revelou, ao JN, uma fonte conhecedora do processo.
Perguntas e respostas
A DGS pede às pessoas para ficarem em casa. Pode obrigá-las a uma quarentena?
A Direção-Geral de Saúde insiste que a Constituição não permite forçar pessoas sem doença psíquica a uma quarentena, ao contrário de países como a França. Por isso, recomendará aos portugueses um isolamento social voluntário. Isso mesmo diz Francisco George, o anterior diretor-geral de Saúde, que apela a uma mudança na lei. É que a alínea H do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição autoriza expressamente o internamento forçado, mas em caso de anomalia psíquica.
É ilegal impor a quarentena?
A Direção-Geral da Saúde diz que sim, mas os dois constitucionalistas ouvidos pelo JN garantem que não, desde que feito com intervenção judicial e proporcionalidade. Luísa Neto e Paulo Otero, das Faculdades de Direito do Porto e Lisboa, respetivamente, explicam que está em confronto o direito à integridade pessoal e o direito à saúde de terceiros.
Qual o limite dos direitos?
Quando há direitos em confronto, deve ser preservado o "núcleo essencial" do direito, ou seja, o âmago de cada direito. Daí em diante, assegura, a doutrina recente permite "uma leitura mais abrangente, não apenas literal" da lei.
Há outras razões?
Paulo Otero chega à mesma conclusão: não é porque a Constituição especifica o internamento por anomalia psíquica que a norma não pode alargar-se a doenças contagiosas. A alínea H, diz, contém três ideias: o internamento é possível por razões de saúde pública; se o permite por receio de contra o próprio ou terceiros, também o permitirá perante o risco de epidemia; e exige intervenção judicial.