Bento XVI representa linha de continuidade e aprofundamento do tradicionalismo de João Paulo II.
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Cinco anos de pontificado de Bento XVI podem parecer, à vista desarmada, uma ruptura com o que estava para trás, particularmente com a revolução do Concílio Vaticano II. Mas será mais correcto dizer que houve continuidade com outro rosto.
Tão longo foi o pontificado de João Paulo II que, quase por imposição alheia à consciência, é impossível observar os cinco primeiros anos de Bento XVI sem traçar linhas de comparação. E esse exercício tende a ser mais emocional do que racional, há sempre a tentação de dizer que as diferenças são como da água para o vinho. Mas isso terá mais a ver com a aparência do que com a essência: os dois coincidem no conservadorismo, além de que, mais do que representarem um episódio de sucessão, significam uma linha contínua na governança da Igreja romana.
Mas não são iguais. Joseph Ratzinger mexeu nos corredores do poder, alterando grupos de influência e mantendo uma Cúria idosa, deu ao Papado uma imagem pública mais circunspecta. Está menos apto a ser o rosto de uma organização em cujos bastidores imperava. E é da inabilidade para lidar com a face escrutinável da Igreja, até pelos que não a integram, que tem sido feita a imagem pública do pontífice. Em particular devido aos escândalos de pedofilia e ao papel que, enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, herdeira do Santo Ofício, terá tido no encobrimento de casos com eclesiásticos.
No particular dos escândalos sexuais, a postura do Vaticano tem oscilado entre as estratégias de vitimização e os apelos à penitência. Saberão os cardeais, que escolheram este já idoso teólogo para guiar o galeão católico num período de crise, se hoje pode resultar a estratégia de prevenir com ortodoxia e fechamento qualquer possibilidade de perda de controlo. Certo parece que, esbarrando numa sociedade sedenta do imediato e do visível, a Igreja é aparentemente penalizada. Mas a Igreja anda cá há muitos anos e, em termos doutrinais, o imediatismo jamais será um caminho a seguir.
Na aparência, pelo menos, Bento XVI representou um endurecimento de posições. É acusado, por exemplo, de ter posto de lado os avanços no ecumenismo e no diálogo inter-religioso que terão sido feitos por João Paulo II. Mas terá sido mesmo assim?
Erudito, homem de gabinete e de bastidores, Joseph Ratzinger terá sentido problemas em lidar com a maior visibilidade proporcionada pelas vestes brancas. A começar pelo famoso discurso na Universidade de Ratisbona (Alemanha), em que uma citação do imperador bizantino Manuel II Paleólogo foi vista como a associação do Islão à violência, sendo desde logo o Papa fustigado pelos irados ventos que saíam de vários sectores do mundo muçulmano ou dos comentadores menos atentos. Num contexto académico, a citação fazia sentido, para enquadrar todo o fanatismo religioso - em qualquer religião - como potenciador de intolerância e violência, mas o resultado prático foi, apenas, a exacerbação do mesmo fanatismo. Um fogo controlado, depois, com gestos como a visita à mesquita azul, em Istambul.
Com o Judaismo, os atritos têm sido, também, vários, podendo destacar-se a revolta contra o impulso dado ao processo de beatificação do Papa Pio XII, acusado de ter fechado os olhos à Shoah, ou o levantamento da excomunhão a quatro bispos tradicionalistas, um dos quais nega a existência de câmaras de gás nos campos nazis.
Tudo isto contrasta com os encontros inter-religiosos que João Paulo II promovia em Assis e ficavam bem no retrato, mas, na essência, como nota o especialista francês em assuntos religiosos Henri Tincq, as mudanças são poucas, e o Papa já mostrou, por actos e por palavras, não querer regredir nas relações com judeus e com muçulmanos.
No que respeita ao ecumenismo (o relacionamento com outras confissões cristãs), Bento XVI é acusado de ter protagonizado um retrocesso em relação ao predecessor. Porém, a prática não corresponde totalmente a essa imagem. Ainda em Março deste ano visitou um templo luterano, confirmando estar aberto a dialogar com os credos protestantes. E, se o diálogo com a Igreja Anglicana privilegia os sectores mais ortodoxos e conservadores, a aproximação à Igreja Ortodoxa Russa é muito relevante, depois de ter sido impensável no pontificado de João Paulo II.
Ratzinger chegou à sucessão de Pedro com 78 anos (mais 20 do que os de Karol Wojtyla quando foi eleito) e é outra pessoa. Desajeitado a lidar com a imagem pública (declarações sobre preservativos em viagem para África, relacionamento de pedofilia com homossexualidade, comparação das críticas sobre pedofilia a uma vaga de anti-semitismo...), acaba por ser, no entanto, o líder da mesma Igreja que, segundo os críticos, vem-se afastando há mais de cinco anos do Concílio Vaticano II.