O saudoso “estatuto dourado” da lã move indústrias, associações e produtores a tentar recuperar o produto que nas últimas décadas se tornou um problema na criação de ovelhas. Todos os anos, a maior parte das lãs resultantes das tosquias é deitada ao lixo em Portugal, e a Beira Interior não é exceção
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Produtos 100% de lã são comercializados a altos preços no retalho, mas a cadeia de produção sofre uma crise de décadas em Portugal. A região da Beira Interior já foi conhecida como uma grande produtora de lã, com milhares de indústrias a tecer e a fiar a matéria prima recolhida localmente. Hoje, as poucas fábricas que restam possuem clientes atomizados, em sua maioria estrangeiros, que mantêm a rotatividade da produção, mas não são suficientes para absorver os estoques anuais de lã provenientes das tosquias.
A solução que pouco a pouco é construída por associações de produtores e lanifícios é a valorização da lã. O árduo caminho se inicia na genética dos rebanhos, segue pela profissionalização da tosquia, seleção dos novelos, lavagem das lãs, transformação, até chegar à comercialização de produtos com acabamentos finos que agregam valores sócio culturais e ecológicos. Essa matéria prima complexa depende de muitas etapas para adquirir valor e ainda enfrenta a competição das fibras sintéticas e de mercados externos experientes.
Indústrias locais da lã
Das indústrias de lanifícios que levaram a Covilhã à fama de próspera no romance de Ferreira de Castro, de 1947, restaram apenas duas. Ainda escondidas nas ribeiras da Estrela, já não mais na Covilhã, fazem de Manteigas a aldeia genuinamente da lã e da neve.
A Ecolã é uma das poucas indústrias que mantém o modo de produção artesanal na Serra da Estrela. Fonseca Costa, gestor comercial da empresa, define a relação entre o território e a marca como uma simbiose, ou seja, uma “associação recíproca de dois ou mais organismos diferentes que lhes permite viver com benefício”.
A dinâmica que move o quotidiano da antiga fábrica é ditada pelo “conceito de economia circular da riqueza local”, segundo Fonseca Costa. A produção têxtil artesanal em Manteigas acompanha todo o ciclo da lã, desde a tosquia até ao produto final e “utiliza ao máximo todos os recursos endógenos que existem na região”. O ADN da marca figura-se na lã de uma das dezasseis raças autóctones de ovelha em Portugal, a Bordaleira Serra da Estrela, e também se integram a essa identidade as figuras dos pastores locais, da mão de obra maioritariamente local, além da própria tipologia dos produtos que inclui capas e padrões de mantas utilizadas há mais de 200 anos na região.
“Neste momento, há apenas duas empresas neste formato, no passado já existiram muitas. Este projeto é de facto um bocado único, devido à antiguidade e sobretudo a estar focalizado numa certa tradição, num saber fazer local.” A linguagem da tradição é a tónica da indústria fundada em 1925, que existe desde os tempos dourados da lã na vila de Manteigas.
“No começo do Verão, antes de demandar os altos da serra, as ovelhas e carneiros deixavam em poder dos donos a sua capa de Inverno. Lavada por braços possantes, fiada depois, a lã subia, um dia, ao tear. E começava a tecelagem. O homem movia os pés, a tosca construção de madeira, enquanto as duas mãos iam operando o milagre de transformar a grosseira matéria em forte tecido. Constituía o acto uma indústria doméstica, que cada qual exercia em seu proveito, pois a serra não dava, nessas recuadas eras, mais do que lã e centeio.”
Ferreira de Castro, A Lã e a Neve
A lã como matéria prima
“Havia muita empresa familiar, nas próprias garagens tinham teares ou máquinas de costura, digo-lhe garantidamente, que eram milhares de famílias distribuídas à volta da Covilhã e chegavam até Belmonte.” João Serrano, engenheiro técnico da OVIBEIRA, associação de produtores agropecuários da Beira Baixa e um dos poucos classificadores de lã em Portugal, conta que “desde há vinte anos que o setor da lã tem vindo a cair de ano para ano”.
A introdução de materiais sintéticos na indústria têxtil substituiu a matéria prima de origem animal nas últimas décadas. Associado a esse factor, há a competição com outros mercados produtores de lãs com maior qualidade e menor preço, como nos países da América do Sul, no Médio Oriente, na Austrália e na Nova Zelândia. “Hoje há mercados que trabalham muito bem as lãs. Os uruguaios, os australianos, os argentinos, conseguem ir para as tais fibras. Trabalham os animais, deixam filhas das melhores produtoras de lã, das mais finas, compridas e com melhores rendimentos que são lavadas e de facto se tornam lãs muito valorizadas”, aponta João Serrano.
No final do século passado, “a lã tinha aqui um estatuto dourado", diz Fonseca Costa. “Hoje, há exactamente o processo contrário. O leite tem a hegemonia, porque aqui o mercado é soberano e a lã é o último caso”. Para a maioria dos produtores, a lã representa um problema. O engenheiro da Ovibeira conta que “se houvesse alguma coisa que eles deitassem para fazer cair a lã da ovelha, os produtores até preferiam”.
O gestor comercial da Ecolã garante que a obtenção da lã com que trabalham é feita, sobretudo, localmente. “Há alguns pastores daqui que trazem a lã, porque já negociavam com as outras gerações da Ecolã. Mas há também a figura do ajuntador, como em Vila Nova de Tazem, no concelho de Gouveia, que reúne a lã dos pastores”. No entanto, Fonseca Costa alerta para o desaparecimento das lãs provenientes de raças autóctones, como a Bordaleira da Serra da Estrela que está ameaçada pelo cruzamento de raças. João Serrano explica que “devido à desvalorização da lã, o próprio produtor deixou de ter interesse” e opta por selecionar animais que produzam mais leite ou carne.
O antigo armazém de lãs em Castelo Branco guarda marcas do tempo em que a lã ainda valia alguma coisa. O letreiro apagado e as marcas no chão, onde se colocavam as amostras recolhidas na tosquia, demonstram a desvalorização desse mercado. O especialista em classificação de lãs recorda-se: "Há vinte e cinco anos atrás a lã tinha o seu valor. E alguns produtores orgulhavam-se em dizer que de facto as lãs eram boas. Muitos deles quando vinham aqui entregar as lãs diziam ‘as minhas lãs no ano passado foram das melhores que entraram aqui na concentração’”. Segundo João Serrano, as lãs extras no passado “andavam à ordem dos três euros por quilo”, enquanto nos dias atuais chegam a, no máximo, dois euros.
No pasto ao lado na Estrada Nacional, no Teixoso, há mais de cento e quarenta ovelhas sob a mira dum olhar atento. O homem de quarenta e seis anos observa a chuva a aproximar-se, enquanto conta que herdou as ovelhas bordaleiras de seu pai e com a ajuda do programa Jovem Agricultor conseguiu manter-se na profissão. Mas não é por causa da lã que Miguel Antunes tem as ovelhas. “Era 2010, na altura, se não conseguisse fazer o projecto não estava nessa vida. Arrisquei, meti a proposta, foi aprovada, deram-me ajudas e instalei-me. E lá fui indo, começando a ter o leite, com as ovelhas sempre a dar uns borreguitos... E cá ando.”
A vida do pastor não é por si só fácil, “não há feriados, nem dias santos”, conta Jorge Miguel Antunes. Ainda assim, veio a melhorar com as vedações de cercas elétricas, telemóveis e carros que já não prendem mais o pastor moderno às andanças diárias. No entanto, a queda na comercialização e os baixos preços não correspondem à memória das passadas gerações de pastores. “É assim, antigamente, o meu pai quando tinha as ovelhas… Ah, isso estamos a falar há quarenta anos atrás, que eu me lembre. Vendiam a arroba, na altura, a três contos, ou seja, eram quinze euros. Uma arroba são quinze quilos. Já nessa altura era um euro por quilo. Era muito bom! Há trinta e tal anos, um euro era bom. Hoje estão nos vinte cêntimos estas lãs.”
A lã tornou-se um problema sem solução, com o qual os pastores têm de lidar todos os anos. “Isto aqui com a lã está complicadíssimo. Este ano, essa que aqui tenho é para deitar para o lixo ou eu tenho que mandar vir para aqui uma máquina para enterrá-la”. Ainda que a prática seja um crime ambiental, o produtor de ovelhas encontra-se desafiado pelo destino da lã. Ter de tosquiar os animais todos os anos significa investir dinheiro no descarte, seja ao incinerar a lã, como exige a lei, ou a contratar máquinas para a enterrar, sob o risco de coimas elevadas.
As indústrias que produzem o burel a partir da lã de raças autóctones são o principal destino de comercialização. Miguel Antunes descreve a incerteza que acomete os muitos produtores de ovelhas que disputam a venda para as poucas fábricas que restaram. “No ano passado vendi só a minha lã, da bordaleira, para Manteigas, para o burel. Mas este ano não sei se a querem.”
A tosquia da lã
As tosquias começam entre abril e maio, durante todos os anos os pastores ocupam-se durante alguns dias com esta difícil tarefa. Jorge Miguel Vicente Antunes, pastor desde os 20 anos, conta-nos que “para tosquiar as ovelhas que aqui tenho, vêm o meu irmão e o meu pai. Pronto, são dois ou três homens que me ajudam. Eu, assim… estou agarrado à máquina. Eu tosquio uma ovelha, largo-a, tosquio outra, largo-a. Eles depois apanham a lã e trazem as ovelhas junto a mim. Leva um dia e meio, dois dias, depende.”
Grande parte das tosquias que são feitas no país acabam por não introduzir a lã no circuito comercial. Além da dificuldade de encontrar compradores que a leve por um preço mínimo, não há quem transforme a lã. A única fábrica que lava os velos na região está na Guarda e até mesmo os espanhóis recorrem a ela. Segundo o gestor comercial da Ecolã, “há um movimento em cadeia muito importante nos lanifícios, que envolve lavar, selecionar, fiar e tecer a lã. E como há cada vez menos transformadores, a lã acaba por ser queimada”.
Nos quase dez anos em que esteve parado o sector das lãs da associação de Castelo Branco, houve o crescimento de um monopólio de tosquiadores na região que se mostrou prejudicial aos produtores e ao mercado. “Todo o sector das lãs da Ovibeira esteve parado entre oito e dez anos. No regresso da recepção das lãs em 2021, nós vimos o mau estado em que chegaram até à concentração das lãs.” Devido ao relato das dificuldades dos produtores nesse ano, “eram defeituosas ou não conseguiam tosquiadores a tempo e horas, alguns eram mal formados e não se conseguiam facturas do serviço, havia uma série de defeitos”, por isso a Ovibeira reorganizou a campanha de tosquias em 2022, relata João Serrano.
Com a falta de mão de obra qualificada na região, a associação começou a contratar tosquiadores uruguaios. “Nós viramos-nos para a contratação de uma equipa de tosquiadores profissionais que frequentam uma escola no Uruguai para aprender a tosquiar. E, de facto, no primeiro ano da campanha das lãs não estávamos à espera de tosquiar tantos animais. Chegaram a cerca de trinta e quatro mil. Foi um sucesso”.
Gil Vicente, assessor de direção da associação, acrescenta que as equipas uruguaias se distinguem dos tosquiadores portugueses. “Estas equipas não necessitam de ninguém para apanhar as ovelhas e ensacar a lã. O produtor não tem que se preocupar com nada, nem com alimentação, é o que a gente costuma dizer ‘com chave na mão’”.
Os estrangeiros vindos do Uruguai são contratados pela associação por meio de uma empresa espanhola. Os produtores, independentemente de serem associados, precisam apenas de realizar a inscrição na Ovibeira para serem contactados para a tosquia com uma semana de antecedência, minimizando a dificuldade com a mão de obra e garantindo a facturação tributária do serviço.
Para o segundo ano, em 2023, a associação prevê a tosquia de cerca de cinquenta mil animais, que vão gerar à volta de cem mil quilos de lã. A campanha começa em abril e termina no dia 18 de junho.
Isabella Cavalcanti é estudante do 2.º ano de mestrado em Jornalismo, na Universidade da Beira Interior (UBI), onde também se licenciou em Ciências da Comunicação. O gosto por ouvir histórias levou-a a criar o podcast .COM, onde dá voz à comunidade ubiana.
Junto com os colegas de curso, colaborou como jornalista na 3ª temporada da Rádio da Universidade e participou na cobertura do 5.º Congresso dos Jornalistas, um evento marcante na sua trajetória.