Dois Anos de Pandemia: momentos que ficam gravados depois do maior desafio de sempre
Dois anos passados, profissionais de alguns dos hospitais mais pressionados do país rebobinam alegrias, tristezas, angústias e também a solidão imposta pela pandemia.
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Na fita do tempo de António Sarmento não houve dias maus e dias bons nos últimos dois anos, "houve em cada dia períodos péssimos e outros melhores" que suavizavam os anteriores. O diretor do Serviço de Infecciologia do Hospital de S. João aceitou parar e revisitar momentos daquele que foi o maior desafio da sua carreira. O presidente do Centro Hospitalar Lisboa Norte, Daniel Ferro, e a diretora clínica do Hospital Fernando Fonseca, Ana Valverde, também o fizeram. Profissionais com cargos de enorme responsabilidade em hospitais que estiveram muito pressionados falam das alegrias e tristezas, das angústias e da solidão vividas dentro de portas, mas também da resiliência e capacidade de adaptação das equipas.
Dois anos volvidos, o segredo, desvenda António Sarmento, foi conseguir "criar momentos de bonança no meio da tempestade". Numa viagem a um passado recente, o médico recorda a angústia do desconhecido, do que estava para vir, e de ver alguém da equipa fraquejar. A solidão nas enfermarias, onde os doentes passavam os dias sozinhos, apenas confortados por profissionais envoltos numa parafernália de proteções; a solidão em fim de vida; a solidão dos médicos que tiveram de decidir na incerteza e de tomar decisões sobre o fim de vida sem conseguirem partilhar esse peso com as equipas e com as famílias.
Os melhores momentos aconteceram aqui e ali, de cada vez que era resolvido um dos maus. Por exemplo, a angústia de ver os doentes morrerem sozinhos foi atenuada quando o hospital começou a chamar os familiares, conta António Sarmento. Também a simplificação dos equipamentos e dos circuitos melhorou o dia a dia das equipas e diminuiu a solidão dos doentes.
A 27 de dezembro de 2020, António Sarmento foi o primeiro português a ser vacinado contra a covid-19. Foi um dia histórico, mas garante que não teve mérito no feito. No entanto, recorda com especial carinho o momento em que um doente com 100 anos que teve covid-19 saiu do serviço. Mostrou "como a idade não é critério para excluir".
A angústia da falta de EPI
Daniel Ferro centra-se primeiro nos pontos positivos e deixa para o fim as dificuldades. Está consciente de que a imagem da fila de ambulâncias à porta do Hospital de Santa Maria ficou gravada na memória dos portugueses, mas não foi o pior, porque "houve sempre capacidade de resposta". Para quem geriu a pandemia dentro do hospital, a preocupação com a escassez de ventiladores e de equipamentos de proteção dos profissionais - EPI - (que nunca chegaram a faltar) é a primeira memória. O impacto da suspensão das visitas aos doentes também não dá para esquecer. "Foi uma violência que causou enorme angústia e limitou a recuperação dos doentes", assevera Daniel Ferro.
Entre as dificuldades, houve bons momentos. Desde logo, a capacidade de adaptação do hospital, que em pouco tempo cresceu para lá do imaginável e transferiu centenas de profissionais entre serviços. A abertura à mudança também surpreendeu pela positiva. "A mudança gera desconforto, resistência, mas na pandemia não houve estes fenómenos", conta o administrador, elogiando o espírito de missão das equipas. No final, ficam lições a aproveitar. E a otimização da capacidade de internamento, que permitiu acabar com as macas nos corredores, é uma delas.
"A realidade vivida nos últimos dois anos foi o maior desafio que o Hospital Fernando Fonseca enfrentou nos seus 26 anos de história", resume Ana Valverde. Quem está de fora lembra-se bem da crise de oxigénio, em janeiro de 2021, que obrigou a transferir dezenas de doentes durante a noite. Mas a diretora clínica não lhe dá tanto relevo. Foi uma noite em tantos dias de esforço, de recordes de doentes internados e assistidos. A memória desfia-se em números e em elogios à resiliência e empenho dos profissionais.