Substância detetada em 20 autópsias médico-legais desde 2009. Há portugueses a querer saber mais, apesar de venda e consumo serem ilícitos. Alfândega não regista apreensões.
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Há uma substância que está a ser adquirida ilegalmente por portugueses para induzir a morte e que, em outros países, é usada para a prática do suicídio assistido. Pelo menos 20 pessoas tinham a droga no organismo, de acordo com autópsias realizadas pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), entre 2009 e 2022, a pedido do Ministério Público. Por questões éticas, o JN optou por não identificar o nome do produto. Houve anos em que não foi registado qualquer caso da "W", como a iremos nomear no artigo. Em 2022, três pessoas tinham a droga em doses letais.
Em Portugal, o Infarmed adianta que não há "medicamentos com autorização de introdução no mercado contendo esta substância ativa". A "W" é uma substância controlada, o que significa que apenas determinadas entidades têm autorização para a adquirir. Mesmo que a queiram obter, necessitam de uma "autorização de utilização especial" do Infarmed, já que "não está comercializada".
Os "interesses de ordem médica/clínica, médico-veterinária, científica e didática", afirma fonte do Infarmed, são os únicos em que a "W" pode ser usada em Portugal. No entanto, tendo em conta os dados das autópsias médico-legais divulgados pelo Ministério da Justiça, a droga está a ser usada para outra finalidade: é ingerida em dose suficiente para provocar a morte.
A substância é utilizada em medicina veterinária, por exemplo, para eutanasiar animais. O JN constatou haver sites estrangeiros a vender a droga sem receita, o que pode explicar como há portugueses a conseguir obter a "W". A droga ilícita só é detetada na autópsia médico-legal, um tipo de perícia feita quando há suspeita de "morte violenta" ou de "causa ignorada". Poderão existir mais casos, que nunca serão conhecidos, já que as autópsias não são geralmente feitas em doentes terminais.
Sem registo de apreensões
Paulo Santos, membro da comissão coordenadora do "Direito a Morrer com Dignidade", movimento cívico de defesa da despenalização da morte assistida em Portugal, admite que já receberam "vários pedidos" acerca desta droga, nomeadamente como obtê-la e "indicações" a dar sobre a própria substância. A resposta é sempre a mesma: "Não prestamos informações sobre essa matéria, porque o nosso foco não é esse".
26 portugueses são membros da Dignitas, a associação suíça que ajuda doentes terminais a aceder à morte medicamente assistida, através de "suicídio assistido/acompanhado".
Caso a "W" seja encomendada pela Internet e chegue por correio a casa dos portugueses - o que constitui uma atividade ilícita, já que se trata de uma substância controlada à luz da lei portuguesa -, o produto tem de passar pelas alfândegas. Porém, a Autoridade Tributária não registou apreensões da referida droga "nos últimos anos". Também o Infarmed não identificou "situações ilícitas no âmbito da utilização da referida substância".
O membro do "Direito a Morrer com Dignidade" acredita que alguns pedidos sobre a "W" são "legítimos". Como o de uma mulher que contactou a associação por email, "com uma doença particularmente agressiva, que está desesperada e já foi sujeita a cirurgias no estrangeiro". Outros, diz, podem ser "falsos pedidos".
"Queremos que todo o processo [morte assistida] decorra de acordo com a lei", garante Paulo Santos, que acrescenta que a toma ilegal da "W" tem de ser encarada como "suicídio", já que não passa por nenhum crivo médico e psicológico e funciona à margem da legislação. A associação reuniu cerca de 8400 assinaturas, em 2016, em defesa da despenalização da morte assistida em Portugal. A petição foi entregue na Assembleia da República e tornou-se um dos documentos precursores da discussão da eutanásia.
Um problema mundial
"A procura da "W" não é apenas um problema nacional, é mundial", diz Félix Carvalho, presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Farmacêuticos. "Há motivo de alarme em outros países, como o Japão, a Austrália ou os Estados Unidos". A substância atua como um "depressor do sistema nervoso central", que provoca hipnose e sedação. "Se houver sobredosagem, entra-se em coma profundo", diz. A morte pode chegar em poucos minutos.
Félix Carvalho adianta que a "W" não é a única substância que pode ser facilmente adquirida pela Internet para suicídio. "Há outras pragas." O professor acredita que é uma "moda", que ganhou força com a "publicação de alguns livros". Um diretor de um grupo internacional pró-eutanásia diz receber "ocasionalmente contactos de portugueses". Há 104 nacionais na base de dados e 39 são membros ativos da organização.
O INMLCF revela que os casos de "W" são sempre comunicados ao Ministério Público, a instituição "que ordena as autópsias médico-legais e é o titular" dos processos. A Procuradoria-Geral da República não indicou quantos inquéritos foram abertos.
Morte assistida à espera da decisão do Tribunal Constitucional
O diploma da morte medicamente assistida em Portugal está pendente da decisão do Tribunal Constitucional (TC), que a deverá anunciar até ao final do mês (tem 25 dias seguidos a contar da data do pedido). O órgão pode declarar que o diploma é inconstitucional ou dar um parecer favorável, deixando nas mãos do presidente da República se quer vetar ou promulgar a lei. Entre avanços e recuos desde 2016, incluindo uma declaração de inconstitucionalidade, um veto político de Marcelo Rebelo de Sousa e uma dissolução da Assembleia da República, o diploma foi novamente aprovado pelo Parlamento no fim de 2022. A 4 de janeiro, o chefe de Estado enviou o decreto para fiscalização preventiva por parte do TC. O novo texto exclui a exigência de "doença fatal" e aponta que a morte medicamente assistida "não punível" ocorre por decisão da própria pessoa, que esteja "em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável". O diploma inclui a definição de vários procedimentos, como os prazos para os pareceres dos médicos especialistas e a objeção de consciência pelos profissionais de saúde.
Detalhes
Crime
Se a compra ilícita da droga "W" for considerada tráfico de menor gravidade, o infrator pode ficar sujeito a uma pena de prisão entre um e cinco anos, de acordo com o artigo 25.º da legislação portuguesa de combate à droga.
Prevenção
Se precisa de ajuda e está em Portugal, contacte o serviço de aconselhamento psicológico do SNS24 (808 24 24 24) ou o SOS Voz Amiga (213 544 545). Em caso de emergência, ligue para o 112.