Comerciantes dizem que Baixa de Lisboa "corre risco de ficar descaracterizada". Porto e Braga também sofrem com inflação e valores das rendas.
Corpo do artigo
A venda de quarteirões inteiros para a construção de hotéis, os elevados valores das rendas de espaços comerciais, que vão, segundo os comerciantes até 50 mil euros por mês em Lisboa, e a perda do poder de compra têm levado ao encerramento de dezenas de lojas na Baixa de Lisboa, dificuldades também sentidas no Porto e Braga. "Desde o início de janeiro, estão a fechar em média 18 lojas por dia no país, ou seja, já encerraram quase 1700 lojas", diz Carla Salsinha, presidente da União das Associações de Comércio e Serviços, referindo-se a dados da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal.
Quem anda pela Baixa de Lisboa, não há mês em que não se depare com o fecho de mais um espaço comercial, muitas vezes substituído por lojas de souvenirs ou de grandes cadeias internacionais. Carla Salsinha acredita que, a continuar assim, "dentro de um ou dois anos, corremos um sério risco de o comércio da Baixa estar todo descaracterizado".
Dez mil euros de renda a vender a um
A lojista diz que tem sentido "um acréscimo muito grande de encerramentos sobretudo em lojas de roupa e acessórios de moda", que se deve "à inflação e ao asfixiar da classe média", mas não só. "De cada vez que a Câmara permitir que um fundo imobiliário fique com um quarteirão que tinha dez lojas e desaparecerem todas, está a promover a desertificação do comércio", critica a comerciante, que teme que a situação piore. "Algumas das retrosarias mais antigas da Baixa funcionam em prédios que vão entrar em obras e receamos que desapareçam, mesmo estando salvaguardadas como "Lojas com História" (distinção municipal)", alerta.
O vice-presidente Associação de Dinamização da Baixa Pombalina, Vasco Mello, também está preocupado com a "total descaracterização" do Centro Histórico da capital. "As lojas de souvenirs continuam a abrir como cogumelos. Pagam rendas mensais de 5000 ou 10 mil euros e vendem artigos de um euro. Enquanto o Estado não investigar a concorrência desleal, os preços dos arrendamentos vão continuar a ser altos", critica.
Joel Azevedo, presidente da Associação dos Comerciantes do Porto, diz que têm fechado espaços comerciais no Porto e que "as lojas de recordações também estão a crescer" nesta cidade. "Não percebo como conseguem resistir com os preços do mercado", observa, acrescentando que "corremos o risco de nos tornarmos uma cidade igual a tantas outras e perdermos o interesse turístico".
Pedro Guimarães, especialista em urbanismo comercial, que tem estudado o comércio de Braga, alerta para "a reconversão de quarteirões inteiros em Lisboa, numa escala absolutamente impressionante que não terá precedentes no resto do país, mesmo no Porto". O geógrafo diz, contudo, que "o aumento do turismo é transversal a todas as cidades". "Têm fechado muitas lojas em Braga. A pressão turística tem sido muito vincada nesta cidade, mais do que o esperado", repara.
A Câmara de Lisboa diz que as Lojas com História que teriam de transitar para o Novo Regime de Arrendamento Urbano (atualização de rendas antigas) este ano, só terão de o fazer daqui a cinco anos, uma vez que o prazo "foi prolongado". Garante ainda que tem desenvolvido "várias atividades para a dinamização do comércio local", à semelhança da Câmara do Porto, que salienta que "é o único município do país com uma unidade orgânica exclusivamente dedicada a este setor".
Saber mais
113 em Lisboa
Das 236 lojas que existiam nas quatro principais ruas da Baixa de Lisboa (Prata, Augusta, Fanqueiros e Ouro), em 2019, 113 fecharam. Só na Rua da Prata, encerraram 39.
Históricas
Em Lisboa, já fecharam 150 lojas das 300 pré-selecionadas pela Câmara para o programa municipal Lojas com História.
Porto
O Porto reconheceu 104 estabelecimentos comerciais e quatro entidades de interesse histórico através do programa "Porto de Tradição". Destes, encerraram 12.
Acordo europeu
Lisboa, Barcelona, Paris e Roma fizeram, no mês passado, um acordo para a preservação das lojas históricas destes municípios. A ideia é criarem estratégias conjuntas.
Dialogar
Câmara de Lisboa diz que tenta persuadir os senhorios das Lojas com História para não encerrarem, contudo "não tem poderes para interferir nas relações entre privados".
Reportagem
Qualquer dia somos a Baixa das lojas de recordações
A requintada montra da sapataria e chapelaria Lord, na Rua Augusta, inaugurada em 1941, já não tem sapatos. Apenas um papel branco a cobrir a vitrine, juntando-se a tantas outras que fecharam, nas últimas semanas, na Baixa de Lisboa. Desde o início da pandemia, encerraram mais de uma centena. "Qualquer dia somos a Baixa dos pastéis de nata e das lojas de recordações", lamenta Pedro Teixeira, funcionário da Casa Macário, o estabelecimento mais antigo da Rua Augusta, com 110 anos.
A sapataria Lord, a loja de roupa Vitrine e as lojas do Sporting e do Benfica são alguns dos exemplos dos espaços que fecharam mais recentemente na Baixa lisboeta. Os proprietários da Vitrine terão recebido "um milhão de euros" para saírem e ali abrirá uma loja de recordações, segundo comerciantes ouvidos pelo JN. A Nunes Corrêa, uma marca centenária que vestiu presidentes da República fechou para abrir uma loja de maquilhagem de uma grande cadeia.
Para Herculano Lima, a explicação para o fenómeno é simples. "As rendas são muito altas. Vão dos 7000 aos 35 mil euros mensais e continuam a subir. Provavelmente, vão fechar muitas mais", acredita o funcionário da Casa Macário. Opinião partilhada pelo colega Pedro Teixeira. "A Baixa está a mudar completamente, as lojas tradicionais vão sair todas. Na Rua da Prata, têm-se vendido muitos prédios e já fecharam muitas lojas. Não sei onde isto vai parar".
O edifício onde o restaurante Minhota da Prata serve refeições há 47 anos, na Rua da Prata, também já foi vendido. "Agora estamos em negociações para tentarmos ficar mais 10 anos. Estamos aqui há 25 anos, não nos podem pôr a andar assim", diz David Martins, dono do estabelecimento.
Antonieta Achega encerrou a loja de roupa que tinha na Rua Augusta depois do prédio ser vendido e mantém aberta a da Rua da Prata, com dificuldades. "As pessoas gostam da qualidade das nossas malhas, mas quando olham para o preço retraem-se. E abrem a toda a hora lojas de "souvenirs"".
Hugo Barreiros, da retrosaria Nardo, na Rua da Conceição, diz que "os senhorios estão "loucos"". "Os contratos terminam, sobem as rendas e os comerciantes não conseguem manter os negócios. Há cinco anos que estão para arrendar um espaço, não arranjam ninguém, e mesmo assim estão a pedir 50 mil euros de renda por mês", conta, lamentando ainda o desaparecimento de várias lojas. "Já fomos 15 retrosarias aqui, agora somos cinco. Quando só houver pastéis de nata e ímans, Lisboa deixa de ter turistas".