Estou no estrangeiro há 70 anos. Tenho uma noção muito particular do nosso país e é uma noção que só funciona dentro do meu espírito. Se fosse a tornar pública essa minha maneira de ver, ia incomodar as pessoas, ia incomodar-me a mim próprio e não ia ser verdadeiro. Ia pintar um bocadinho. Nós sabemos o que o país é, o que gostamos e o que não gostamos. Sabemos aquilo que nos dói, aquilo que nos envergonha....Somos as vítimas do nosso carinho. Somos bonzinhos, suportamos mal os antagonismos. Temos a mentalidade de fazer favores, de solicitar favores e isso, para um país, não funciona. Funciona sim a nível humano.
Corpo do artigo
Apesar de tudo, não somos os pacóvios da Europa, somos os mais pobrezinhos e os mais carinhosos. Se vemos um estrangeiro, ele ainda não perguntou o que quer e já estamos a dizer para ir por ali. É uma coisa rara no resto da Europa.
Se me visse ao espelho diria que estou velho. Sou um sujeito que por acaso nasceu em Vila Nova de Gaia mas sou transmontano desde que nasci. Sou curioso e comecei a ler aos quatro anos através do meu avô paterno. Ele obrigou-me a aprender a ler e fez muito bem. Cresci um rebelde contra os meus pais, contra a sociedade, contra o tempo. Mas o que eu sabia era que, no ambiente em que tinha nascido, não ia durar muito. Por isso, o exílio.
O ambiente em Portugal era todo o contrário à minha maneira de sentir e de ser. Um ambiente desajustado, de dependências, de aborrecimentos, de poder entre os fortes e os fracos. Aconteceu o 25 de Abril mas o "jeitinho" perdura. Há 70 anos, o meu pai tinha um amigo que era inspetor da PIDE e chegou ao pé dele e disse:
- Olha lá, o teu rapaz tem umas amizades tão estranhas que ele daqui a nada está na cadeia.
Como o meu pai não queria que eu fosse para a cadeia - nem eu - o que se arranjou? A coisa mais bizarra do Mundo. Em Freixo de Espada à Cinta estava um ministro do Interior chamado Trigo de Negreiros. O meu pai foi ter com ele a Freixo e explicou-lhe:
- O meu rapaz não tem passaporte e se for ele a pedir não lho dão. Pode dar um jeitinho? E então ele deu um jeitinho. Deram-me um passaporte e fui para França. Que melhor definição de Portugal? E depois há a submissão. Temos tanta submissão que quando ficamos cansados dela, fazemos coisas horríveis. ...
Dentro de mim estão todos os antagonismos e todas as diferenças de Portugal. Sou do povo. O meu princípio e o meu fim é uma história que não vou contar. Vai ser contada aos poucos.
Escrevi no livro "Trás-os-Montes, o Nordeste" que nós estamos "entre o carinho e a fúria e a ânsia de partir e a praga de ficar". É o resumo daquilo que eu sou. Tive a necessidade extrema de sair da terra há muitos anos mas não consigo viver sem ela. Vivo em Amesterdão há 69 anos, é uma das cidades mais excecionais do Mundo. É bonita, carinhosa, bem organizada, muito cosmopolita, até demais, mas mesmo assim, ao fim e ao cabo, se me sinto bem lá, sinto-me bem de outra maneira aqui, de uma maneira mais genuína das duas. Não venho a Portugal para me refugiar na escrita. Escrevo em toda a parte. A minha escrita é simples. Eu não tenho daquelas frases que aparecem em sonhos. Durmo mal. Quando estou na cama, não faço mais nada do que estar a imaginar coisas. A minha mulher, de vez em quando, acorda e pergunta-me o que estou a fazer. Eu respondo que estou a escrever e ela não acredita.
A minha existência não é fácil nem é normal. A única coisa que me interessa de facto são as palavras. Porquê? Porque com elas posso fazer uma quantidade de coisas: posso insultar, construir um sem número de possibilidades que a palavra oferece. Eu preciso de pessoas como material.