Há vinte anos, o Hospital de S. João, no Porto, foi um dos primeiros do país a ter uma equipa dedicada à urgência. "Uma pedrada no charco" que, pela primeira vez, permitia remunerar os profissionais de forma diferenciada, com incentivos pelo desempenho. Mas com os cortes impostos pela troika, o projeto foi definhando e saíram dezenas de médicos. Fomos ver o que sobra e o que falta, numa altura em que o modelo das equipas dedicadas à urgência, bem como as condições de trabalho e a remuneração associada, estão a ser negociados entre o Ministério da Saúde e os sindicatos médicos.
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Duas décadas depois, na equipa dedicada da urgência do S. João restam 19 médicos da casa e só dois entraram no pós-troika. São metade da equipa que já foram e as escalas são asseguradas com a ajuda de internistas, que tinham recuado para as consultas e cirurgias e tiveram de voltar, e com cada vez mais prestadores de serviço (43). "Sobrevive-se", na expectativa do regresso de um modelo "que teve bons resultados" e acalentando a esperança da criação da especialidade de Medicina de Urgência.
Se tal não acontecer, as "falências pontuais", que têm afetado as urgências de Lisboa e Vale do Tejo, "vão multiplicar-se por 10, por 20, por 100", avisa o diretor da Unidade Autónoma de Gestão da Urgência e Medicina Interna do S. João. Nélson Pereira recorda os bons resultados assistenciais e económico-financeiros do modelo. "Permitiu que os internistas recuassem para o apoio permanente ao internamento, libertou médicos para as consultas e cirurgias", e ajudou na abertura de novas valências como a hospitalização domiciliária, descreve. Hoje restam poucos e sem especialidade própria: entrar no projeto significa "condenar a carreira".
A resistente número um, a médica com mais anos de urgência naquela casa, chama-se Inês Garcia. Tem "quase 60 anos", 25 deles em escalas de manhãs, tardes e noites intensas. Leve sotaque espanhol, conduz 240 quilómetros por dia entre casa (Galiza) e o trabalho e, apesar de estar dispensada, continua a preferir as noites. "Como é que alguém pode gostar de fazer maratonas? Eu não compreendo, mas é isso que respondo quando me perguntam como é que gosto de fazer urgência". Inês Garcia é uma "referência" no serviço e das poucas que ainda recorda o tempo em que não havia equipa dedicada.
"Em 1998, isto era delirante, havia muita desorganização e não se conseguia mudar nada", diz. Olhando para trás, destaca a organização - "o S. João é provavelmente a urgência mais organizada do país", - e a flexibilidade para mudar as normas sempre que necessário como grandes conquistas. Do lado negativo, a perda dos incentivos que levaram à saída de "excelentes profissionais", que "adoravam o que faziam", mas que queriam progredir nas carreiras.
Fazer a diferença
É a falta da especialidade de Medicina de Urgência - chumbada em 2022 pela Assembleia de Representantes da Ordem dos Médicos - que está a deixar Rita Casal num limbo. Apaixonou-se pela urgência quando estava a fazer o internato geral e, desde então, trabalha como prestadora de serviços no S. João. Tem 31 anos, adora "poder fazer a diferença em momentos de grande sofrimento e gravidade", adora "o trabalho de detetive" dos sintomas.
Adora o que faz e, por ora, não quer tirar nenhuma especialidade que não seja urgência. Sente-se parte da equipa do S. João, onde espera trabalhar por muitos anos, de preferência com vínculo e uma carreira. "Vejo-me a fazer urgência com 50 anos", assegura.
Não é para todos, "há um perfil do médico da urgência", explica Nélson Pereira. Resumidamente, é alguém que "gosta de fazer muitos diagnósticos por dia" e que precisa de sentir a recompensa imediata pelo que faz.
"Sentir que se fez a diferença, sentir que se salvou uma vida". É a grande diferença entre o médico da urgência clássica (uma vez por semana) e o médico da equipa dedicada. E no fim de cada turno, Rita já conhece a pergunta: "Como é que aguentas isto todos os dias?"