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Agrupamento da Bobadela recebe alunos de dezenas de nacionalidades, alguns refugiados. Escola criou projeto de acolhimento e programa de mentorias
Situado na proximidade de dois centros de acolhimento de refugiados, o agrupamento de escolas da Bobadela há muito recebe alunos estrangeiros que não sabem uma palavra de Português. A escola já recebeu alunas que combateram na Serra Leoa ou que não almoçavam porque não sabiam comer com talheres. Quando o mundo inteiro entra pelos portões, o acolhimento é essencial, frisa ao JN a diretora, Fernanda Almeida. As escolas são “uma bomba social com todos os problemas do mundo”, frisa a mediadora social, Micol Brazzabeni.
Há 18 anos na direção, Fernanda Almeida recorda-se do primeiro aluno que chegou sem documentos. “Não sabíamos o que fazer com ele”. O caminho, conta, tem sido feito por tentativas e erros. Por considerar que o tempo de Português Língua Não Materna (PLNM) é insuficiente a escola criou o projeto “Abraçar a Língua Portuguesa”, para facilitar o acolhimento. No ano passado iniciou mentorias com os alunos e ainda integra um programa externo (New ABC) para ter acesso a guiões e glossários que apoiam os professores. Ainda assim, mais tempo e técnicos é desejado.
“Vamos aprendendo com as experiências”, explica Fernanda Almeida, recordando uma aluna que se recusava a almoçar nos primeiros dias. “Demorou algum tempo a perceber que não comia porque não sabia usar os talheres”, conta.
A escola tem 1290 alunos, quase 200 estrangeiros de 31 nacionalidades, 42 dos quais frequentam a disciplina de PLNM (a maioria do Iraque e Paquistão). Recebe alunos que passaram anos em campos de refugiados. Não é só a língua que é diferente, toda a realidade é nova. Do alfabeto à forma como o livro é folheado, as regras da escola ou os hábitos diários. Fernanda Almeida já teve pais que lhe pediram para os filhos rezarem na escola e alunas que mudavam de roupa, na escola, para um estilo mais ocidental.
185 nacionalidades
Lina Shakir tem 13 anos e está no 8.º. Nasceu em Portugal mas a família fugiu da guerra no Iraque para um “país seguro”. A irmã e o irmão, mais velhos, frequentaram o mesmo agrupamento, na altura sem mentorias ou projeto de acolhimento. Se para o irmão o “mais estranho” foi adaptar-se a uma escola mista, para a irmã “tudo foi difícil”. “Ela veio muito nova para cá e foi como se fosse um novo mundo, nunca tinha visto nada assim”, conta Lina. Por isso, explica, aderiu ao programa de mentorias, para ajudar outros alunos a adaptarem-se.
Para Fernanda Almeida as mentorias permitiram aos alunos aprender mais depressa. O apoio dos mentores ou de alunos estrangeiros com conhecimento de Inglês é, aliás, “uma ajuda preciosa” para os professores. O Google tradutor é outra ferramenta usada diariamente por docentes e alunos, nas aulas ou intervalos.
Este ano letivo, 12% dos alunos das escolas públicas são estrangeiros de 185 nacionalidades diferentes, confirmou ao JN o Ministério da Educação. Serão cerca de 130 mil alunos, um número que está em constante subida, levando à sobrelotação de escolas num quadro de falta de professores.
ONU na sala de aula
À entrada, à volta de um canteiro o lema da escola - “o futuro começa aqui”-, está escrito em várias línguas. Pelas paredes encontram-se indicações internacionais. E murais pintados, como o de uma aluna ucraniana que ilustrou num abraço o projeto pedagógico do agrupamento, “acolher com afeto”.
O “bloco 2”, onde decorre a aula de PLNM, está assinalado em português e em árabe. A única professora da escola a dar esta disciplina vai no terceiro tempo quando a equipa do JN entra. O grupo de 13 alunos (faltaram dois nesse dia), tem várias nacionalidades: iraquianos, iranianos, paquistaneses, uma colombiana e uma franco-italiana. Quatro chegaram no ano passado, os restantes este ano letivo.
Patrícia Gomes estava a corrigir uma ficha no quadro: treinavam vocabulário como o nome das disciplinas ou graus de parentesco, e pequenos diálogos. A docente, de Português e de Inglês, vai mudando de língua constantemente.
PLNM “é um grande desafio”, afirma, explicando que as dúvidas dos alunos são tantas que o planeamento é feito “quase aula a aula”. A avaliação é similar: testes, trabalho em sala de aula, avaliação oral, trabalhos de casa. Os alunos têm as mesmas horas de PLNM, por semana, que os restantes têm de Português. “É pouco” e, por isso, garante Patrícia Gomes, “a falta de tempo” é o maior constrangimento. As aulas das duas disciplinas têm de coincidir nos horários, sendo estes alunos distribuídos por duas ou três turmas de cada ano, explica Fernanda Almeida.
O PLNM não tem grupo de recrutamento. O ME frisa que as “escolas, no âmbito da sua autonomia, efetuam a distribuição destas horas pelos docentes (de vários grupos). A proposta de Orçamento do Estado prevê o reforço da disciplina.
Dos 22 alunos de 2.º e 3.º ano que João Coelho tem na sala, 18 são estrangeiros. Um aluno que sabe curdo e inglês é a sua melhor ajuda.
“Por vezes, acho que tenho as Nações Unidas na minha sala”, diz. No 1.º ciclo, os alunos têm quatro horas de apoio, por semana, dentro da sala de aula com outro professor. “Sinto-me o maestro de uma orquestra”, diz, explicando que os divide em grupos e atribui-lhes tarefas intercaladamente para ir dando atenção à vez. Ter outro professor de apoio mais tempo é uma alteração que defende.
Convocatórias em árabe
Álvaro Chicarra é diretor de uma turma com vários alunos estrangeiros. Já se habituou a traduzir as convocatórias para os pais em Inglês e até árabe (através do Google tradutor).
“Têm muitas dúvidas”, refere, apontado como principais as regras da escola e os apoios educativos a que os filhos podem ter acesso. O que mais lhe falta “é tempo”. Os professores, defende, deviam ter menos alunos para trabalharem em equipa.
O projeto “Abraçar a Língua Portuguesa” dedicado aos alunos estrangeiros prevê que durante o primeiro mês, os alunos de PLNM frequentem apenas as aulas práticas como Educação Física, as de Inglês, e o restante tempo seja ocupado com o Português. As atividades são desenvolvidas por um professor de 1.º ciclo (João Coelho), uma Educadora Social (Maria Santos) e uma Mediadora Social (Micol Brazzabeni).
“Ensinamos frases quotidianas. Por exemplo, saudações ou fazerem um pedido numa papelaria ou pastelaria”, descreve Maria Santos. A socialização é o principal objetivo. “É um ciclo contínuo de acolhimento”, explica Micol Brazzabeni, referindo-se à chegada constante de novos alunos que no caso dos refugiados podem permanecer no agrupamento apenas alguns meses.
São alunos que trazem uma “bagagem” mas o princípio não é questioná-los sobre o que viram ou viveram. Devem ser eles a dar esse passo. É certo que podem não saber a língua, a Geografia ou a História de Portugal mas têm competências e é a esse conhecimento, indica a mediadora, que se deve chegar para os integrar.
“A escola é uma bomba social. Os alunos passam cá muito tempo e trazem com eles todas as questões do mundo”, afirma Micol Brazzabeni. Por isso, defendem as duas técnicas, é tão importante o acolhimento. “Com tantas tarefas e burocracias perde-se o afeto e todos temos direito a carinho”, afirma Micol.
Maria Santos insiste que as escolas não podem perder os técnicos recrutados após a pandemia. Num mundo cada vez mais individualista, estrangeiros ou nacionais, precisam de muito acompanhamento.