Há quem se disponibilize para devolver salário sob a forma de donativos. Ordem conhece casos e apela à denúncia às autoridades.
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Centenas de diplomados em Psicologia estão impedidos de exercer a profissão por não encontrarem entidades disponíveis para lhes pagar o estágio profissional, como determina a lei. Desesperados por uma oportunidade, há jovens a aceitar estratagemas como devolver esses montantes às instituições onde estagiam, sob a forma de donativo, para poderem concluir a formação.
"Além da questão moral, essa prática é ilegal e deve ser comunicada à Ordem dos Psicólogos (OPP) e ao Ministério Público", recomenda Tiago Pereira, vogal da direção nacional da Ordem, que confirma a situação. "Já houve denúncias e esses protocolos foram cancelados."
Há inúmeros relatos de jovens que identificam a obrigatoriedade de receber um salário durante o estágio profissional como o principal entrave no acesso à profissão. "Têm sido reportadas situações em que os estagiários recebem uma remuneração, mas têm de devolver esse valor", confirma um técnico de uma universidade do Porto.
Outros disponibilizam-se mesmo a assegurar o pagamento desse subsídio para poderem concluir a formação. "Tenho uma colega que propôs que fossem os pais a pagar a parte da instituição e, mesmo assim, a Ordem não aceitou", conta Mafalda Soares, mestre em Psicologia, que desistiu e está a trabalhar na área dos seguros.
"Se as organizações não estão disponíveis para pagar, estariam se fosse o primeiro ano de prática, sem ser um estágio profissional?", questiona Tiago Pereira. Preocupado com a situação, considera, no entanto, que "não é um problema generalizado".
Mas nada melhor do que fazer as contas. Se, no ano passado, se inscreveram na Ordem 884 psicólogos com o segundo ciclo de estudos (mestrado), para fazer estágio profissional, num universo de cerca de 1200 a saírem das faculdades, o que sucedeu aos mais de 300 que não constam nas estatísticas? Pelo que o JN apurou, desistiram: estão a trabalhar no comércio ou nos serviços.
"Há uma quantidade considerável que não exerce funções como psicólogo, devido à dificuldade em fazer estágio profissional", garante o técnico de uma universidade do Porto. Perante este cenário, assegura que "arranjar um estágio profissional é uma vitória, mesmo que não haja remuneração".
Presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, Inês Salgado alega o desespera dos estudantes para aceitarem este tipo de condições, que as empresas aproveitam. "Tanto nos estágios curriculares, como nos profissionais, há um fenómeno de aproveitamento de mão de obra barata", confirma o técnico.
Face a estas dificuldades, a sugestão passa por a OP garantir o mesmo número de ofertas de estágio profissional do que de diplomados ou, como propõe Bárbara Valente, por os estágios curriculares serem considerados profissionais. "No estágio curricular fiz avaliação psicológica e intervenção clínica", diz a jovem.
Tiago Pereira rejeita a proposta. "Os estágios académicos são apenas de observação para concluir o curso", justifica. Além disso, defende que "não há nenhum jovem impedido de exercer Psicologia", pois existem diversos apoios e a possibilidade de criar projetos próprios. Aconselha os jovens que não fizeram estágio profissional a contactarem a Ordem.
  Ao fim de 200 tentativas, Bárbara desistiu
    
Determinada a encontrar um estágio profissional para poder exercer psicologia, Bárbara Valente, 29 anos, respondeu a anúncios e enviou candidaturas espontâneas ao longo de dois anos, sem sucesso. Após cerca de 200 tentativas, foi trabalhar para a área das telecomunicações. A obrigatoriedade de o estágio ser remunerado constituiu o principal entrave para aceder à profissão.
Bárbara sente-se "frustrada e revoltada". Mal acabou o mestrado em Psicologia Clínica e da Saúde, em 2016, inscreveu-se na Ordem dos Psicólogos (OP) e começou a enviar currículos para as instituições com protocolo com a OP. "Na maioria das vezes, nem respondiam", conta. Com o passar do tempo, o desânimo foi crescendo. Após um ano de procura intensiva, parou de tentar. Depois, retomou a procura, voltou a desistir e, mais tarde, a tentar outra vez.
"Não tive oportunidade"
"Cheguei a ter respostas mas, quando chegávamos à parte da remuneração, não queriam pagar", recorda a jovem da Maia. Ainda encontrou uma clínica do Porto recetiva a entregar-lhe casos clínicos, pelos quais seria paga, mas não garantia o cumprimento do número de horas de estágio exigido por lei. Surgiu também a possibilidade de estagiar com uma psicóloga, mas como era prestadora de serviços não podia celebrar protocolo com a Ordem.
Face aos obstáculos, Bárbara pensou abrir atividade por conta própria, para poder fazer estágio. Mas o risco de não cumprir o número de horas estabelecido, e a obrigatoriedade de ter uma remuneração e um espaço físico, levaram-na a afastar essa possibilidade. "Eram muitos entraves e acabei por desistir da ideia."
"Deixei de procurar estágio pelo desgaste emocional, pelo sofrimento que me causava e pelo tempo que perdia", confessa. "Senti que me prejudicava, pois criava expectativas que não se concretizavam", justifica. "Não me foi dada uma oportunidade. Tenho vocação, conhecimento, competência e todas as ferramentas para ser uma excelente psicóloga, mas não consegui devido ao estágio." Apesar de conformada, Bárbara ainda não perdeu a esperança de vir a exercer.
