Governo retoma plano, aprovado em julho de 2018, mas que nunca foi concretizado. E promete ajudas aos agricultores no próximo ano. Ministra compromete-se a duplicar produção nacional até 2027. Essa meta estava prevista para 2023.
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Cai a área agrícola, cai a produção, aumenta a dependência externa dos cereais. Há anos que é assim. A Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais, aprovada em julho de 2018, devia estar a terminar e ainda nem começou. A pandemia, a seca e a guerra agravaram o acesso aos cereais e acordaram o país para o problema. Produzimos só 6,3% do trigo que comemos, 19,3% de todos os cereais. A Comissão Europeia já nos avisou. A situação é grave. Somos o segundo pior país de Europa, a seguir a Malta.
O Ministério da Agricultura retoma, agora, as metas de 2018 com novos prazos: aumentar o autoaprovisionamento dos cereais para 38% até 2027. Na estratégia de 2018, essa meta deveria ser atingida em 2023 através de medidas a concretizar até 2020 ou "após 2020", mas, volvidos quatro anos, há quase tudo por fazer.
Fartos de promessas, os agricultores querem "ver para crer". Dizem que é possível, mas é preciso unir esforços: há que apoiar novos produtores, pôr a tecnologia e a engenharia ao serviço do objetivo e perceber que este deve ser um desígnio nacional, sem "guerrinhas" entre organismos do Estado.
Em 30 anos, a queda na produção de cereais foi abrupta: passou de um grau de autoaprovisionamento de 56,1% em 1989/90 para 19,4% em 2020/21. Só no trigo, caiu 90%. Perdemos a autossuficiência no centeio e na aveia. Caímos para metade no milho. Os cereais representam, hoje, apenas 3,5% da produção agrícola. O Ministério da Agricultura reconhece, em resposta ao Parlamento, que os agricultores têm "optado por outras culturas", como "pastagens", azeite e hortofrutícolas.
Ajudas para 2023
O problema não é de hoje, mas a pandemia fê-lo saltar para a ordem do dia. Seguiu-se a seca. A guerra foi "a gota de água": subiram os custos de produção - sobretudo do gasóleo e dos fertilizantes - e aumentaram os preços.
Nos cereais de maior consumo, o milho preocupa, pois produzimos 23,7% do que comemos. Em três anos, perdemos quase 35% da área semeada e importamos, por ano, mais de um milhão de toneladas. A Ucrânia era o nosso principal fornecedor. Agora, lidera a Roménia. Num ano, o preço da tonelada subiu 26,6% e está nos 342 euros. No trigo, a situação é ainda pior: mais consumo (84% dos cereais que comemos), maior dependência. Só 6,3% do consumo é satisfeito pela produção. Produzimos 80 mil toneladas, importamos quase 2,4 milhões. Ucrânia e Rússia pesam menos nas importações, mas mesmo assim sentiram-se os efeitos da guerra: desde fevereiro, o preço subiu 51% para os 443 euros a tonelada.
A ministra da Agricultura quer quase duplicar a produção, subindo para 38% o autoaprovisionamento. Maria do Céu Antunes afiança que não faltarão cereais, mas retoma a estratégia e promete ajudas em 2023 para "estimular os agricultores a fazer um conjunto de investimentos, seja do ponto de vista da inovação e do desenvolvimento tecnológico, seja para a disponibilização de água".
O presidente da Associação Nacional de Produtores de Cereais, José Palha, entende que "é possível, desejável e fundamental para o país, até numa lógica de coesão territorial". Em 2017, fez parte do grupo que gizou a estratégia. "Nalguns casos, com muito pouca água, podemos multiplicar a produção". É preciso dar o "salto tecnológico", rumo a um uso mais eficiente dos recursos, ao aumento da produtividade e à redução de custos. Para isso, há que apoiar o investimento. Oliveira e Sousa, da Confederação de Agricultores de Portugal, lamenta que o Governo esteja "atrasado". A meta "não é impossível", mas tem que haver "incentivos" e, sobretudo, um plano.
Setor à lupa
A dependência externa nos cereais é enorme. Embora projete o aumento da produção, o Ministério da Agricultura admite que a dependência das importações "tenderá a prevalecer", até por razões climatéricas: cada vez menos precipitação e mais seca.
Faltam condições
"O prolongamento do período de escassa precipitação e de baixo teor de água no solo, pouco favoráveis à produção cerealífera", é cada vez mais frequente em Portugal. Daí que o Ministério da Agricultura reconheça que a nossa dependência externa não desaparecerá. "Portugal não tem condições naturais que se traduzam em fatores de competitividade para a produção de cereais de outono-inverno em larga escala", admitiu em resposta recente, enviada aos deputados do PCP, a que o JN teve acesso.
20 Medidas
Na Estratégia Nacional para a Promoção da Produção de Cereais, aprovada em 2018, estão 20 medidas. Entre elas, destacam-se a redução dos custos de energia, a simplificação do licenciamento de infraestruturas hidráulicas, o aumento da capacidade de armazenamento de água, a valorização da produção nacional e a prioridade nos investimentos em arrozais.
Arranque em 2023
O Ministério da Agricultura dá conta de que "parte significativa" das medidas da estratégia nacional, cuja implementação devia estar na fase final, "tem como horizonte de aplicação o período de programação que se iniciará em 2023".
Aviso da Europa
Já em dezembro de 2020, a Comissão Europeia avisava: o caso de Portugal é "especialmente preocupante" e pode mesmo "provocar quebra no abastecimento". Nos 27 países da Europa, só Malta tem números piores.
Balança negativa
No total dos cereais, a balança comercial tem um saldo negativo de mais de 600 milhões de euros (em muito impulsionada pelo trigo e pelo milho). No agroalimentar, só o peixe é pior. Por causa da seca em Portugal, a produtividade nos cereais cairá, este ano, 10% a 15%. A estimativa é do INE.
Marca de Cereais
O lançamento da marca "Cereais do Alentejo", em 2019, foi uma das poucas ações que avançou, liderada pela Associação Nacional de Produtores de Cereais. Começou com 200 toneladas. 100% nacional, com selo de qualidade, produzido segundo as melhores práticas ambientais, com garantia de compra a um preço fixo. Este ano, a produção atingirá as 8500 toneladas e já está a despertar o interesse da grande distribuição.