Os antigos presidentes da República "têm-se portado muito bem" após deixarem o cargo e as intervenções recentes de Cavaco Silva não fugiram a essa regra.
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É esta a opinião dos politólogos ouvidos pelo JN, a propósito do artigo e da entrevista em que Cavaco criticou o Governo e lançou "uma bomba atómica" sobre o líder cessante do PSD. José Adelino Maltez e José Fontes consideram que o país deve valorizar a "experiência" dos ex-chefes de Estado, embora lembrando que Cavaco, Jorge Sampaio, Mário Soares e Ramalho Eanes assumiram perfis "completamente diferentes", após cessarem funções.
"Cavaco Silva mostrou que não é um cadáver adiado", afirma Adelino Maltez, considerando natural que as intervenções do antigo presidente tenham "incomodado muita gente". "É o senador do regime que mais cargos ocupou", lembra.
Para Maltez, os objetivos de Cavaco foram criticar as opções do Governo e consumar o "encerramento ativo" da vida política de Rui Rio. Essa segunda "foi a parte mais dolorosa", afirma o catedrático, recordando o trecho em que o ex-chefe de Estado descreveu o PSD atual como força "regional" e "suporte" do Governo.
José Fontes também destaca esses momentos: "Foi uma crítica destrutiva, uma espécie de bomba atómica", refere. Contudo, o catedrático da Academia Militar discorda de quem fala em "reaparição" de Cavaco. "Ele nunca desapareceu".
O que se passa, argumenta, é que o ex-presidente "é dos políticos que melhor sabe gerir os silêncios". O facto de se resguardar é uma velha arma de Cavaco, considera: "Conseguiu pôr toda a gente a falar do artigo e da entrevista".
Soares opôs-se a Passos
As palavras de Cavaco dominaram a agenda, mas Maltez relativiza. "Os ex-presidentes até se têm portado muito bem. Têm-se irmanado com o presidente em exercício". Fontes concorda, destacando-lhes a "experiência política": "Aliás, não é por acaso que são membros do Conselho de Estado por inerência", diz.
Maltez realça que, dos quatro ex-presidentes eleitos após 1974, só Cavaco e Soares possuem "o lastro" de terem governado o país. Já Fontes elege Sampaio como "o mais consensual" no período pós-presidência: o socialista chegou a criticar a "insensibilidade" da troika, porém, regra geral, manteve-se distante dos partidos, até pelo papel desempenhado na ONU.
Soares, pelo contrário, foi "sempre muito interventivo", diz o politólogo. Essa faceta sobressaiu na altura da troika, quando o fundador do PS apelou, repetidamente, à queda do Governo "moribundo" de Passos. Em 2013, organizou um comício "em defesa da Constituição", ao lado da Esquerda. Sete anos antes tinha concorrido à presidência, perdendo para Cavaco.
Maltez exclui Eanes, por ter sido "um presidente militar". Fonte lembra que, nos anos 80, este embarcou na "aventura do PRD", o partido que promoveu.
Marcelo Rebelo de Sousa já fez saber que terá uma intervenção "minimalista" quando se retirar, mas Maltez e Fontes desconfiam. Este último acrescenta: "Se calhar, Cavaco também considera que está a ter uma intervenção minimalista. A questão é que o que ele diz tem um grande impacto".
Outros casos
Todos os presidentes - com Soares à cabeça - fizeram declarações que marcaram a atualidade depois de se terem retirado. Recorde algumas afirmações, bem como as recentes palavras de Cavaco.
Mário Soares, 2012
Meio ano antes do episódio do "irrevogável", protagonizado por Paulo Portas, Soares vaticina um afastamento entre Portas e Passos, bem como o possível desaparecimento do CDS: "O ministro Portas, humilhado pelo primeiro- -ministro, ou salva o seu partido - e, para isso, tem de sair do Governo - ou, ficando, escavaca o partido sem salvar o Governo. [Não agindo], perde o Governo e o partido. É uma simples questão de tempo."
Em entrevista ao DN, não poupa nas palavras contra Passos Coelho. "Como súbdito submisso de Merkel [Passos] só faz o que ela manda."
Mário Soares, 2013
Em entrevista ao "i", Soares apontou o dedo ao Governo e a Cavaco Silva: "Este Governo está moribundo e o presidente só vê o partido dele, o que é anticonstitucional. É um presidente partidário e que não respeita a Constituição que jurou."
Jorge Sampaio, 2013
Sampaio manteve-se à margem da política partidária, com algumas exceções. Esta é uma delas, em pleno período da troika: "O nó górdio à nossa volta é tão grande que ou há alguns compromissos sérios que façam frente à insensibilidade da troika ou, então, estamos em grandes dificuldades."
Jorge Sampaio, 2017
Na sua biografia política, o socialista explica o motivo de ter dissolvido o Parlamento, em 2004, provocando a queda do primeiro-ministro Santana Lopes: "Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva. Mas não foi decisão 'ad hominem'. Hoje faria o mesmo."
Ramalho Eanes, 2019
Numa conferência na SEDES, Eanes fez um diagnóstico ao país: "[Os deputados são] mais delegados dos partidos do que representantes dos eleitores [pelo que] muitos eleitores não se sentem representados. Quando a moral pública enfraquece, fragiliza-se o coletivo e abrem-se portas à corrupção."
Cavaco Silva, 2022
Recorrendo à ironia, Cavaco desafiou Costa num artigo no "Observador": "Estou certo de que, encerrada a fase da geringonça, o seu Governo de maioria absoluta fará mais e melhor do que as maiorias de Cavaco Silva."
À CNN, Cavaco criticou o rumo do PSD de Rui Rio: "[O PSD] quase pareceu um partido regional. Penso que muitos eleitores viram um PSD que era suporte do PS. Às vezes, era mesmo humilhado em debates pelo PS"