Inaptidão foi decretada por falta de níveis adequados de hormonas masculinas, recorrendo a regras com 21 anos. ILGA fala em discriminação e Governo vai rever normas.
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Daniel Prates, hoje com 20 anos, viu a sua candidatura ao Exército, no ano passado, esbarrar no momento em que informou que é transexual. Depois de vários argumentos esgrimidos para incentivá-lo a desistir, o jovem foi considerado inapto com base num diagnóstico de hipogonadismo - a ausência de níveis adequados de hormonas sexuais masculinas -, previsto nas tabelas gerais de inaptidão e incapacidade das Forças Armadas, publicada há 21 anos. O Governo garante que está a alterar essas normas, sem avançar uma data de conclusão.
As tabelas remontam a 1999 e o Ministério da Defesa Nacional explica que já estão a ser revistas para se ajustarem "às características dos jovens atuais". A ILGA (associação de defesa dos direitos humanos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo) diz que há falta de literacia.
Abertas 180 vagas
Quando Dani, o primeiro menor transexual do país a mudar de nome e de género no registo civil, concorreu à Academia Militar, foram abertas 180 vagas. "Tive valores altos nas provas e tinha média que me permitia entrar", relata. Mas a candidatura esbarrou nos testes médicos, na hora em que informou ser transexual. Foi dado como inapto para o serviço militar. O Hospital das Forças Armadas justificou-se com o diagnóstico de hipogonadismo, que consta nas tabelas de inaptidão para o serviço militar.
O jovem procurou a ajuda da ILGA para contestar a decisão. Não entende como é que "a mera necessidade de terapêutica hormonal, com testosterona, pode condicionar a aptidão psicofísica", sobretudo considerando que as análises revelavam testosterona "dentro da normalidade".
E fez-se valer do Código do Trabalho que proíbe a discriminação em função da identidade de género. A luta foi em vão, com o Hospital das Forças Armadas a argumentar que "a condição militar pode nem sempre ser compatível com a toma regular de medicação". Nos últimos dez anos, segundo os ramos das Forças Armadas, apenas uma pessoa transexual foi admitida. O caso aconteceu no Exército, que não esclarece se o militar fez a transição antes ou após a admissão, mantendo-se a prestar serviço na especialidade que lhe foi atribuída.
O Exército explica a exclusão de Dani, com base na Lei do Serviço Militar. "No entanto, está a decorrer o processo de revisão das tabelas, em linha com o Plano de Ação para a Profissionalização do Serviço Militar, de abril de 2019", sustenta ainda em resposta ao JN. A medida visa ajustar as tabelas "às características dos jovens atuais, para assegurar uma participação mais representativa da sociedade portuguesa na Defesa Nacional". O mesmo é dito pelo Ministério da Defesa Nacional, que não avança quando é que o processo estará concluído.
Serviços sem preparação
Exército, Marinha e Força Aérea asseguram que, desde 2019, há formação sobre a igualdade e a identidade de género, com vista a eliminar estereótipos.
Ainda assim, Marta Ramos, diretora da ILGA, defende que "há um problema sistémico de falta de entendimento sobre questões de saúde ligadas à transexualidade" e que há "discriminação quando se nega a priori o acesso à admissão". A ativista lembra que a Organização Mundial de Saúde já despatologizou a transexualidade. "Se o Dani não tivesse dito que era transexual, será que estaríamos aqui?", questiona.
A diretora da ILGA admite que haverá mais casos idênticos. "Os serviços não estão preparados, devido a estereótipos sobre o que é uma pessoa trans. Como são os corpos, que camaratas e balneários vão usar, como será se forem em missão? Vivemos num mundo muito segregado por sexos. Estamos a abrir a Caixa de Pandora para áreas muito conservadoras. Tem que haver trabalho de pedagogia".
Inventaram mil e uma desculpas para me tentar excluir
Há muito que Daniel Prates, jovem transexual de 20 anos, sonhava entrar nas Forças Armadas. E, apesar de todo o preconceito que conheceu ao longo da vida, depois da evolução legal que o país viveu nesta área em 2018, não imaginava que acabaria a ver o sonho destruído, ao ser considerado inapto após ter revelado que é transexual. "Sinto que tentaram encontrar uma razão para me considerarem inapto. Quero lutar contra isso. Faltam regras sobre como proceder com transexuais".
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Dani foi o primeiro transexual menor a mudar de sexo e de nome no registo civil em Portugal. Tinha 17 anos, quando a lei que permitia mudar de género aos 16 anos foi aprovada no Parlamento. A 8 de agosto de 2018, mal entrou em vigor, ele estava à porta da conservatória para largar de vez o nome Daniela. Foi a primeira conquista de uma luta que estava longe de terminar. Desde então, já fez a mastectomia, retirou o útero e os ovários. Em setembro, começou as cirurgias de reatribuição de sexo. Mas, antes disso, aos 18 anos, quis concretizar o sonho de entrar no Exército e candidatou-se à Academia Militar. "Fiz as provas físicas e tudo. Na consulta médica, expliquei a minha situação". Aí começou a travar mais uma dura batalha.
Mandado para casa
"O tenente-coronel chamou-me ao seu gabinete e mandou-me para casa nesse dia. A primeira desculpa foi porque não tinha as cirurgias completas. Ripostei, obviamente. Isso não era uma razão plausível". Os argumentos foram-se sucedendo: "Primeiro, explicou-me que se fosse para a guerra, a medicação poderia não chegar. Mas não é por não tomar hormonas que vou morrer. Depois, disse-me que não poderia responsabilizar-se sobre o que me aconteceria no balneário. Ouvi um discurso que me queria obrigar a desistir". Dani não baixou os braços. Acabou por voltar à academia para concluir as provas.
"Nessa altura, fui a uma consulta no Hospital das Forças Armadas e disseram-me que não poderia continuar por causa da toma de medicação hormonal regular". O veredito final acabaria por chegar por carta: "No último relatório médico, vem a indicação de que estava inapto por sofrer de hipogonadismo, por ser um homem que não produz hormonas masculinas. Contestei e responderam passado meses. Inventaram mil e uma desculpas para me tentar excluir, não sabiam como justificar".
De pouco lhe valeu a revolta. "As Forças Armadas têm uma tabela de inaptidão completamente desatualizada. Continuam a considerar a transexualidade uma doença psiquiátrica. Percebi que os jovens trans não podem ser militares. Qualquer pessoa transexual, a partir do momento em que altera os documentos para o género com que se identifica, vai sofrer de hipogonadismo. Falta formação dentro das Forças Armadas", lamenta Daniel
Sabe que há idade-limite para se candidatar a diferentes categorias. "E, agora, vai ser cada vez mais difícil. Talvez esta minha luta não vá servir para mim, mas possa ajudar outras pessoas no futuro".