Em entrevista ao JN/TSF, Fernando Araújo considera que os alicerces da casa foram postos em causa, criando desconfiança. Falta fundamentação para as PPP e os centros de saúde privados são “passe de mágica” que não resolve.
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O “número um” do PS pelo Porto assume-se como candidato a deputado, mas transpira desejo de ser ministro da Saúde. Fernando Araújo, o primeiro diretor-executivo do SNS, deixou o cargo porque não teve apoio do Governo da AD. A reforma que implementou, diz, foi travada pelo Executivo de Luís Montenegro, que trouxe desconfiança e desmotivação ao SNS.
É candidato a deputado ou a ministro da Saúde?
Sou naturalmente candidato a deputado. O secretário-geral, Pedro Nuno Santos, pediu-me apoio, em função do meu conhecimento e da minha experiência, em termos de propostas do lado da Saúde, mas sou candidato à Assembleia da República.
E no caso de vir a ser ministro da Saúde, quem será o seu diretor-executivo do SNS?
Estamos empenhados em ganhar eleições e depois será o primeiro-ministro a escolher o ministro da Saúde. Agora, a sugestão que faço ao próximo ministro da Saúde do PS é que não faça como este Governo, é que ouça as pessoas, avalie o desempenho, analise as propostas e os planos e que tome decisões baseadas na competência, no valor e nunca em questões partidárias ou políticas.
Ou seja, mantém o diretor-executivo atual?
Irei ouvi-lo, o que não fizeram comigo. Naturalmente que, se estiver alinhado com as propostas, será para ficar. Mas será para ficar apoiado, respaldado, com todo o apoio que o ministério e o Governo lhe poderão dar para ter capacidade de implementar as reformas.
Foi isso que não sentiu?
Foi isso que não tive.
Luís Montenegro disse esta semana que houve melhorias na Saúde este inverno, menos idas às urgências, menos espera, menos mortalidade. Já Pedro Nuno Santos diz que a Saúde é o maior falhanço deste Governo. Em que ficamos?
Ficamos nos dados objetivos. Este Governo tinha um plano miraculoso para mudar o SNS em 60 dias, num ano. Mas, na prática, os resultados são maus. No último relatório da Reguladora da Saúde verificámos que temos mais doentes a aguardar cirurgia – 200 mil, mais doentes a aguardar cirurgia oncológica. Mesmo nas urgências, as questões agravaram-se. Na Península de Setúbal nunca tivemos uma altura com todos os blocos de partos fechados e agora tem sido rotineiro. Não conseguiram cativar médicos de família, os concursos tiveram muito menor adesão e isso levou a uma menor capacidade da resposta. Portanto, há um conjunto de questões objetivas que não corresponderam ao que tinha sido prometido, pelo contrário.
E que carta é que o PS tem na manga para a Saúde?
Do lado dos profissionais de Saúde, há um conjunto de iniciativas relevantes: agilizar os concursos de ingresso, melhorar as mobilidades e progressões. Vamos apoiar as rendas, a formação, vamos dar mais autonomia, vamos dar capacidade do ponto de vista da inovação e tecnologia.
Em poucos meses, o Governo da AD fez acordos com médicos, enfermeiros, farmacêuticos, com os sindicatos da Administração Pública. Foi isto que faltou ao PS para pacificar o setor da Saúde?
Seguramente que os acordos são importantes para haver alguma pacificação do setor. Mas o certo é que, no dia a dia, vemos as pessoas desanimadas, desmotivadas e não há, do lado das lideranças, um fio condutor, uma estratégia. Há uma enorme desconfiança do Governo em relação ao SNS, há interferência política e há, acima de tudo, uma desresponsabilização para os problemas.
É viável voltar ao modelo de funcionamento rotativo das urgências, sobretudo em Lisboa e Vale do Tejo?
O modelo estava em evolução. Recordo que no Norte temos há muitos anos concentração de urgências por especialidade, extremamente estáveis. Portanto, há modelos que podem ser construídos, nos quais temos experiência, e estávamos a tentar fazê-lo. Agora, não é possível em meia dúzia de meses alterar todo o processo em curso.
Continua a acreditar que é possível adaptar o modelo que tem funcionado no Norte, mas que no Sul parece ser mais complicado de aplicar.
É mais complicado, mas é possível de aplicar. O que é que não é possível? É desistir do SNS. Achar que tudo isto é muita confusão, muita incompetência, portanto, o melhor é desistir. Isso é que não é possível. Nós continuamos a acreditar no SNS, continuamos a acreditar que o SNS tem capacidade para ser recuperado, para dar uma resposta a todos os portugueses.
Sobre a reforma das unidades locais de saúde (ULS), quem está no terreno diz que continua tudo muito centrado no hospital e não no doente. Foi falta de tempo ou é um modelo que não funciona?
Quando estou a construir uma casa e está na altura de construir os alicerces e chega alguém e começa a colocar em causa os alicerces e não os quer construir, depois acham que a casa não é sólida. O ano que passou, 2024, foi um ano perdido nesse sentido. O primeiro ano das ULS devia ser extremamente acompanhado pela Direção Executiva, pelo Ministério da Saúde, de modo a dar condições, observar boas práticas, apoiar os que tinham mais dificuldades. Era um ano muito sensível, muito exigente, mas foi um ano perdido porque o que veio foi desconfiança, desmotivação, os dirigentes não sabiam se ficavam, se saíam, tudo parou.
O que está a dizer é que o atual Governo mexeu nos alicerces da sua reforma e por isso é que não está a funcionar.
Perfeitamente. E sem colocar uma alternativa. O que colocou em cima da mesa foi desconfiança. Se calhar as ULS não vão continuar, mas continuaram. Se calhar, os dirigentes das unidades, que deveriam implementar os projetos, não iam continuar. E todo esse clima de falta de confiança, de alguma forma de instrumentalização das próprias instituições, levou a uma paragem da reforma. E, portanto, não queiram agora colocar culpas numa reforma que travaram e que não deram condições para ser levada a termo.
E ainda vai a tempo de ser retomada esta reforma?
Vai. Acho que o tempo é curto, mas é possível e por isso também venho aqui à luta.
O PS está disponível para um pacto de confiança no SNS, como foi pedido pelo primeiro-ministro?
Quem lançou a desconfiança no processo foi o primeiro-ministro e o Governo. Eles desconfiam do SNS, não acreditam no SNS, e depois a seguir vêm pedir um pacto de confiança para o SNS?
Concorda com o retomar o processo das parcerias público-privadas [PPP]?
Não tenho nenhum preconceito ideológico contra as PPP. O que tenho de preconceito ideológico é contra a má gestão e a falta de transparência. Não percebo como é possível lançar uma ideia sem qualquer fundamento. Porque é que são cinco parcerias e não seis ou três ou duas? Há capacidade do mercado para responder a estes cinco concursos públicos? Porquê naqueles locais? Porquê Braga se tem bons resultados? Estudaram o impacto que a PPP Almada-Seixal teria na Península de Setúbal, nos hospitais do Barreiro Montijo ou na ULS de Setúbal, que são muito vulneráveis? Houve algum estudo? Nenhum.
Mas admite estudá-las?
Estou totalmente aberto a estudá-las. E fazemo-las desde que defendam o interesse do Estado e dos utentes. Desde que não sejam apenas para distribuir rendas ou anúncios para eleições. Por exemplo, no Algarve, onde é necessário construir um hospital de base há muitos anos, onde não há competição de unidades do SNS, onde há muita medicina privada, até poderia ser interessante estudarmos uma PPP. Tem de ser é com fundamento para que, no final do dia, traga mais-valias.
Mas o que se diz é que o fim das PPP, nomeadamente em Lisboa e Vale de Tejo, foi causa para a debandada de muitos profissionais, nomeadamente obstetras. O regresso destas parcerias poderia ser uma solução para este problema?
Poderia, eventualmente, mas não está estudado. As parcerias a acontecer vão demorar dois, três, quatro anos. E nesses locais já há uma enorme turbulência. Este tipo de anúncio é o pior que há em termos de instabilidade e desconfiança sobre a gestão.
E os centros de saúde com gestão privada, as chamadas USF-C, serão para reverter?
Eram um passo de mágica, mas das 20 que queriam abrir só há seis candidaturas efetivas e algumas podem não chegar ao fim porque as condições não são adequadas. No final do dia não vamos ter soluções.
A Lei de Bases da Saúde deve ser alterada pelo Parlamento?
As questões das leis e dos instrumentos jurídicos dizem muito pouco às pessoas. Queremos soluções para o dia a dia, para os problemas concretos.
Vai ser o seu trabalho daqui a uns meses.
Preferiria muito mais devotar o meu tempo a resolver o problema dessas pessoas.
Ou seja, preferia muito mais ser ministro da Saúde do que deputado.
Preferia muito mais poder ser médico, que é uma coisa que gosto imenso.
Sendo primeiro candidato do PS pelo Círculo Eleitoral do Porto que outros problemas identifica como urgentes?
A habitação, que é um problema transversal ao país, mas que no distrito do Porto também se coloca de forma relevante. É extremamente complicado arranjar casa e isso tem impacto social e na saúde mental. E ainda as questões da mobilidade e transporte, dos comportamentos aditivos.
O PS nas últimas eleições perdeu seis deputados no Porto. Qual é o objetivo este ano?
É conseguir mais votos que a AD no Porto e que isso ajude o PS a ser o partido mais votado a nível nacional. Se não conseguirmos, será uma derrota pessoal, mais do que de Pedro Nuno Santos, será uma derrota minha.