Freire de Sousa: "Um ministro legitimado para negociar só pode ter em conta os territórios"
A meio ano do início do próximo quadro comunitário europeu, nada se sabe da estratégia desenhada pelo Governo. Nem do uso dado à proposta consensualizada pelo Norte.
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O dilúvio de dinheiro que Portugal poderá receber da União Europeia nos próximos anos poderá transformar o país. "Temos que saber o que vamos fazer, com quem vamos fazer e como vamos fazer", aponta Freire de Sousa. Mas, lamenta o presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) do Norte, o Governo não está a aproveitar o conhecimento existente nas regiões para definir a estratégia a seguir.
Até 2023, Portugal terá a parte dos 11 mil milhões do Portugal 2020 que esteja por investir, 15,5 mil milhões do Fundo de Recuperação e o início dos próximos fundos. O país está pronto para investir tanto dinheiro, num espaço de tempo tão curto?
Essa é a pergunta do milhão de dólares: se temos capacidade para responder de forma eficaz e transformar muitos estrangulamentos acumulados na economia. O Portugal de hoje é muito melhor do que o Portugal de 1974 ou 1986. E poderia ser ainda melhor? Sim. Não andamos só a estragar dinheiro durante 30 ou 40 anos, mas não fizemos uma utilização tão eficiente quanto poderíamos ter feito. Agora que os montantes podem ser maiores, devíamos estar ainda mais focados.
Gastar dinheiro não é difícil. O difícil é usá-lo de forma a que seja transformadora. Portugal está a criar condições para isso?
Essa pergunta deve ser dirigida ao primeiro-ministro. Mas, no meu ângulo de observação, podemos fazer mais e melhor: organizar melhor, envolver o conhecimento das universidades, regiões, empresas, municípios... E acho que o fazemos pouco. Vamos a caminho do sexto quadro comunitário de apoio e só temos feito alterações à margem do essencial, pouco revolucionárias e sempre preocupadas em manter o status quo institucional. Hoje temos a obrigação de definir de forma rigorosa o que é preciso fazer para que este seja um país melhor. Não um país visto a partir de Lisboa, Porto, Bragança ou Algarve, mas o somatório das visões. Daqui a dez anos, alguém apontará o dedo a alguém por não o ter feito.
Quem está preocupado em manter o status quo?
Começa na arquitetura institucional da gestão dos fundos. E há a questão de Vítor Gaspar: a divisão entre programas regionais e temáticos. O próprio modelo das autoridades de gestão teria que ser mudado. Uma coisa é uma autoridade de gestão ser expressão de um poder legitimado e democrático. Outra é ser nomeado pelo Governo.
Com a eleição dos presidentes das CCDR, faz sentido acabar com os programas temáticos e gerir o fundo a partir das regiões?
Está a tocar na ferida. Os problemas de interesse nacional devem caber em programas temáticos; outra coisa é tudo o resto. Não percebo por que razão há rubricas nos temáticos que só fazem sentido nos regionais, as redes de águas e saneamento. E em vez de os programas temáticos valerem dois terços e os regionais valerem um terço, teríamos o contrário.
A legitimidade consegue-se com a eleição indireta, como quer o Governo?
Não quero entrar nessa discussão. Há 30 anos que defendo a regionalização e a única regionalização que existe é eletiva direta. Hoje, quero discutir o que fazer - e como - com o dinheiro que vai cá cair. Temos imensa capacidade de gestão dos fundos, mas, se não estiver organizado, algo vai falhar.
É bom que a máquina dê vazão processual. Mais importante é saber para onde se vai e haver quem ponha os pés a caminho...
Por isso é que os agentes no terreno devem ser parte das decisões. Se fizerem coisas demasiado abstratas, mesmo que corretas no papel, não incorporam as particularidades de cada sub-região. As CCDR do Norte, Centro e Alentejo têm um património acumulado de conhecimento que não pode ser delapidado. E há património a nível local. Essas entidades têm de ser chamadas à negociação. Temos que saber o que vamos fazer, com quem e como vamos fazer. E essa gente está a ser demasiadamente não ouvida!
A única iniciativa do Governo conhecida é a reflexão pedida a Costa Silva. Há uma semana, o PS pediu ao Governo que ouça as regiões. Existe algum processo de consulta?
Tanto quanto sei, não.
Já vai tarde?
Portugal é conhecido pelo improviso. Não o defendo, mas de uma forma geral não se tem saído mal. Espero - e não o posso dizer com mais esperança - que sejamos capazes de fazer melhor do que no passado. A gravidade da crise que aí vem e a amplitude dos desafios é de tal monta que, se não o fizermos, corremos o risco de, daqui a dez anos, estarmos muito pior do que no início da crise.
Que resultado teve a estratégia da região para os próximos fundos europeus que entregou ao ministro Nelson de Souza?
Foi aprovada pelo Conselho Regional do Norte, mas é pré-pandemia. Pedi às comunidades intermunicipais e à área metropolitana que adaptassem o documento.
Acredita que a proposta que o Governo levará a Bruxelas será um todo coerente, que leve em conta as propostas regionais, ou estas serão descartadas?
Nunca foi verdade que os planos regionais fossem totalmente descartados. O que talvez não tenham sido é suficientemente incorporados. O Ministério da Coesão conhece o documento. Se a ministra tiver alguma voz, estará em condições de fazer diferente do passado.
O negociador, Nelson de Souza, diz que a proposta não será um somatório das estratégias regionais - algo que ninguém esperaria que fosse. Tem expectativa que defenderá em Bruxelas o fundamental do que o Norte quer para si próprio?
Tenho, só posso ter. No dia em que deixar de ter essa expectativa não estou aqui a fazer nada. Um ministro legitimado para negociar um acordo de parceria só pode ter em conta os territórios. Tendo sido feito um trabalho a nível regional, a expectativa única que posso ter é que vai ser tido em conta pelo Governo. Nós, Norte, temos coisas a propor. Em muitas áreas, somos estruturantes. Queremos ser parte.
Rivoli
Os caminhos da recuperação económica
O JN e a Câmara Municipal do Porto promovem, na próxima sexta-feira, no Teatro Municipal Rivoli, uma conferência intitulada "Os caminhos da recuperação económica em Portugal: hipóteses a Norte". Porque, numa Europa das Regiões, cabe também aos que estão mais próximos do território e das suas gentes fazer o diagnóstico e desenhar soluções. A conferência junta dirigentes, especialistas e autarcas e será encerrada por Elisa Ferreira, comissária europeia com a pasta da Coesão e Reformas. Poderá ser seguida em direto em jn.pt, a partir das 9.45 horas.