Piloto forçado a abandonar profissão por inalar cheiros no cockpit. Autoridades afirmam que não é invulgar e apenas causa "desconforto".
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Um avião da TAP que fazia a ligação entre Lisboa e Londres foi desviado no início de março para o Aeroporto Francisco Sá Carneiro, no Porto, depois de ter sido detetado um cheiro intenso que levou à indisposição dos membros da tripulação. O caso não é único, nem “invulgar” e muito menos desconhecido na aviação. Nas últimas duas semanas, foram registados cinco novos casos em aviões da TAP, com tripulantes e passageiros a serem retirados das aeronaves em agluns casos. Os especialistas chamam-lhe “eventos de fumes”, que se resumem à entrada de gases no interior do avião, causando efeitos graves a quem está a bordo.
O organismo nacional que investiga acidentes aéreos revela que há registo de milhares de incidentes todos os anos nos países da União Europeia (UE), mas continuam a faltar respostas e procedimentos para serem evitados. Há também processos na justiça de quem foi gravemente lesado e foi obrigado a abandonar a profissão.
É o caso de António (nome fictício), piloto, 47 anos, que luta há vários para que o episódio pelo qual passou seja reconhecido como acidente de trabalho. Em janeiro de 2020, preparava-se para descolar do Aeroporto Francisco Sá Carneiro para Amesterdão, quando sentiu um cheiro a plástico queimado e a enxofre no cockpit do Airbus319. O comandante começou instantaneamente a ter náuseas, vómitos, dificuldades em respirar e irritação nos olhos. A aeronave não seguiu viagem e António foi transportado de ambulância para a Unidade de Cuidados de Saúde da TAP. A restante tripulação e os passageiros também sentiram os gases.
Nos países da UE, há registo de 1500 ocorrências anualmente. Segundo o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves (GPIAAF) a “existência de odores estranhos” nas cabines não é “invulgar” e “apenas causa situações de desconforto”. Mas a realidade é que a situação já levou o Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC) a realizar duas sessões de esclarecimento, uma vez que os casos intensificaram-se nos últimos meses.Na origem do problema estará a fuga de óleo dos motores que entram na aeronave através do sistema do ar condicionado.
Há registos de incidentes nos aviões fabricados pela Boeing, mas são nos Airbus 330 e 320 que se constatam mais ocorrências.
Insuficiência renal
No relato a que o JN teve acesso, o caso de António está longe de ser apenas um episódio de “desconforto”, como indica o GPIAAF. A TAP participou o sinistro à Fidelidade que assumiu o acidente de trabalho e encaminhou o comandante para exames de pneumologia. Três meses depois, apesar dos sintomas persistirem e de não ver melhorias no estado de saúde, teve alta. Desde daí começou o calvário. O piloto desenvolveu uma insuficiência renal e luta na justiça, até hoje, para que a seguradora reconheça o episódio como acidente de trabalho.
No relatório médico, consultado pelo JN, fica claro que o piloto apresentava uma função renal estável até julho de 2022, altura em que sofreu um “agravamento progressivo da função renal”, tendo sido submetido a um programa de hemodiálise crónica, três vezes por semana durante quatro horas. O documento não descarta que a exposição aos gases “possa ter contribuído para uma mais rápida evolução da doença”.
O relatório de clínica forense, datado de fevereiro de 2025, concluiu que o comandante sofre de incapacidade permanente de 91,5% que o impede de continuar a exercer a sua atividade profissional. A TAP não confirma a existência de casos na justiça, apenas refere que acompanha a matéria de perto. Além disso, assegura que não há qualquer estudo que “tenha estabelecido nexo de causalidade entre estes episódios de odores e situações que afetem a saúde de tripulantes de forma persistente ou crónica”.
CASOS
NEM DESCOLOU
Em Lisboa, no sábado, um avião com destino a Londres não chegou a descolar de Lisboa devido a cheiros intensos. Segundo a SIC, os passageiros e a tripulação foram retirados do avião encaminhados para a Unidade de Cuidados de Saúde da TAP.
VOO DE PARIS
Foram cinco casos novos em abril, revelou a SIC, que se juntam a vários outros já sinalizados. Um caso muito recente envolveu um voo de Paris, afetado por cheiros intensos, o que levou a que a tripulação fosse sujeita a vigilância médica para despistar eventuais problemas na saúde.
Sindicato questiona conclusões com tripulantes ainda de baixa
O Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves (GPIAAF) não precisou de um mês para fechar o relatório de investigação ao incidente de 11 de março, que obrigou ao desvio de um avião para o Porto. As conclusões constam do boletim trimestral divulgado pela entidade, numa altura em que ainda há tripulantes de baixa médica após a exposição aos cheiros.
O GPIAAF indica que da inspeção aos dois motores e APU não foi detetado “qualquer indício de anomalia de fuga interna de fluidos” e não excluiu que os cheiros possam estar relacionados com “um derrame de água no porão associado ao transporte de peixe”, relativo a 11 de novembro de 2024.
António Pimpão, vice-presidente do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC), estranha a relação entre o último acidente e o derrame de líquido de peixe, uma vez que ainda há tripulantes com sintomas e de baixa médica.
“Temos o caso de um colega que no início teve alterações a nível cardíaco e, neste momento, continua com cefaleias constantes. Foi uma situação provocada, talvez, por uma exposição a substâncias tóxicas e até vai ser acompanhado na especialidade de neurologia. Não consigo compreender como é que um gabinete consegue fechar um incidente quando há tripulantes que estão a fazer análises e exames”, aponta o responsável sindical.
Para o futuro, o dirigente aponta para a necessidade de se fazer um trabalho de “raiz”, no sentido de proteger estes profissionais. “É necessário traçar na entrada da profissão um mapa de análises de determinados marcadores para depois, quando tivermos perante um evento destes, existam modelos comparativos”.
O JN contactou a TAP sobre quantos trabalhadores estão neste momento de baixa médica, mas não obteve resposta.