Grupos extremistas e religiosos doam mais de três milhões a movimentos antiaborto em Portugal
Em cinco anos, grupos extremistas e religiosos doaram mais de 3,3 milhões de euros a movimentos e associações portuguesas com agendas antiaborto. Um novo relatório europeu alerta para um fenómeno que ascende a mais de mil milhões de euros em toda a Europa. Em causa estão direitos sexuais e reprodutivos.
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Entre 2019 e 2023, movimentos e associações portuguesas com agendas antiaborto, antigénero e de oposição aos direitos LGBTQI+ receberam mais de 3,3 milhões de euros financiados por grupos extremistas e organizações religiosas. O montante coloca Portugal na 17.ª posição numa lista relativa aos países da União Europeia que mais receberam este tipo de doações durante esses cinco anos.
No topo da lista encontra-se a Hungria, onde o financiamento foi superior a 147 milhões de euros, segundo-se a Polónia e a Federação Russa - todos países em que o Estado teve a sua quota-parte nos montantes.
As conclusões fazem parte do relatório "The New Wave: How religious extremism is Reclaiming Power" (em português, "A Próxima Onda: Como o Extremismo Religioso Está a Reclamar o Poder"), elaborado por uma equipa de membros do Fórum do Parlamento Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos (EPF, sigla em inglês), que alertam que o objetivo destas organizações é "desmantelar décadas de progresso social", usando discursos que olham para direitos fundamentais "como uma ameaça" a valores tradicionais como a família e a ordem.
O relatório, a que o JN teve acesso, mostra que em toda a Europa o financiamento ascende a mais de mil milhões de euros. "Por trás deste movimento está dinheiro, generoso, estrategicamente colocado e largamente escondido. Uma classe oligárquica emergente, composta por barões da tecnologia, elites industriais e aristocratas do 'velho dinheiro', que está a escrever um vasto projeto social", sublinhou o presidente do EPF, Guillaume Gouffier Valente, no prefácio do documento. Deste total, pelo menos 145 milhões de euros podem ser rastreados até financiamento público, incluindo orçamentos estatais e fundos ligados à União Europeia.
Com base nas conclusões de um relatório anterior, "A Ponta do Iceberg" (2021), o estudo monitorizou o financiamento de 2019 a 2023 proveniente de 275 organizações e atores religiosos extremistas que trabalham para bloquear direitos sexuais e reprodutivos na Europa. E o dinheiro tem várias origens: mais de metade (73%) dos fundos são provenientes de 28 países europeus, com a Federação Russa a contribuir com 18% desse total e os restantes 9% oriundos de organizações sediadas nos Estados Unidos.
A influência do outro lado do Atlântico é grande: as contas mostram ainda que os gastos da direita cristã norte-americana na Europa representam um investimento anual superior a 18,6 milhões de euros. "A segunda presidência de Trump, com apoiantes leais da direita cristã instalados em todo o Governo, transformou o poder americano num megafone global para o extremismo religioso", afirmou diretor-executivo da EPF e autor do relatório, Neil Datta, aquando da apresentação oficial dos dados a semana passada, em Bruxelas.
Grupos que apoiam o Chega e o ADN
Sobre Portugal, o EPF - rede de parlamentares comprometidos na promoção e defesa dos direitos sexuais e reprodutivos na Europa e no Sul global - dá conta de algumas instituições que receberam doações. É o caso da Vida Norte, que, segundo a informação disponível no seu 'site', tem como missão ajudar grávidas que "têm dúvidas ou ponderam uma interrupção voluntária da gravidez (IVG), contribuindo para uma tomada de decisão mais informada, consciente e responsável", e assume "a defesa da vida desde o momento da conceção até à morte natural". Só nesses cinco anos, esta IPSS com atuação no Porto e em Braga, terá recebido mais de 1,5 milhões de euros.
Também é referida a presença em Portugal de dois outros movimentos: o "40 Days For Life" (em português, "40 Dias pela Vida"), originalmente criado nos Estados Unidos, que promove campanhas antiaborto em Lisboa, Porto, Barreiro e Portimão, e organiza vigílias em frente em unidades de saúde em que se pratica a IVG; e o "Teen STAR", também de origem norte-americana, que promove um currículo de educação sexual, inspirado na doutrina católica e centrado na abstinência sexual.
Outros agentes "emergentes" em Portugal incluem comunidades migrantes evangélicas, como os "grupos de influência brasileira" que têm apoiado publicamente partidos de extrema-direita e religiosamente conservadores, como o Chega e o ADN.
"Lobbying" e os media entre os principais financiadores
Entre as entidades financiadoras destacam-se organizações de 'lobbying' (28,8%), meios de comunicação (23,2%), sobretudo alinhados com valores religiosos, fundações privadas que fornecem bolsas (22,4%), partidos políticos e 'think tanks' (12%) - onde se inclui a família europeia dos "Patriotas", do húngaro Victor Orbán, em que o Chega se insere -, bem como prestadores de serviços antigénero alternativos (11%).
"A escala de recursos financeiros, de coordenação internacional e da integração política de atores antigénero não tem precedentes. Não se trata de uma reação negativa ou de uma guerra cultural. A resistência a décadas de progresso em igualdade de género, saúde e direitos sexuais e reprodutivos está no centro da estratégia da extrema-direita para ganhar poder em toda a Europa”, alertou Neil Datta.