"Há crianças que são abusadas e não sabem que estão a ser. Para elas é normal"
Investigadores da Polícia Judiciária e especialistas na área da saúde mental consideram que é preciso apostar mais na educação sexual nas escolas e "o mais cedo possível". "Há crianças que são abusadas muito pequenas e não sabem que estão a ser. Para elas é normal", alertou José Matos, da Polícia Judiciária, esta manhã de quarta-feira num seminário em Lisboa.
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Priorizar a prevenção no combate ao abuso sexual, apostar na educação sexual nas escolas desde o ensino pré-escolar e "colocar a criança no centro da intervenção" foram alguns dos desafios e prioridades partilhadas, esta manhã de quarta-feira, no seminário "Abuso sexual de crianças: Respostas presentes e propostas futuras", que decorreu no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa. Trabalhar mais em rede, não desvalorizando o papel de nenhum profissional, e "menos de costas voltadas" foi outra das sugestões deixadas por especialistas, académicos, profissionais de saúde e investigadores.
Cristina Soeiro, psicóloga forense e investigadora da Polícia Judiciária, há 32 anos a trabalhar nesta área, alertou para a importância da aposta na educação sexual. "As nossas crianças não aprendem a sexualidade da melhor forma e, muitas vezes, quando tomamos conta da situação já temos uma situação desta natureza. Noutros países, a educação sexual está ao nível da educação de outras áreas", referiu uma das várias oradoras do debate, acrescentando que "em Portugal já existem muitos projetos, mas deviam ter uma repercussão diferente".
Opinião partilhada por Joana Alexandre, professora e investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Social do ISCTE, que sublinhou que "estas abordagens devem acontecer desde o pré-escolar". "As nossas crianças não ficam traumatizadas (por se falar de abusos sexuais na escola), que é sempre um dos mitos que ouvimos, porque qualquer programa de prevenção não aborda a questão do sexo ou abuso sexual de uma forma explícita", explicou.
As crianças em idade pré-escolar, reforçou também Rute Agulhas, psicóloga e coordenadora da nova Comissão de Acompanhamento de Vítimas de Abuso Sexual na Igreja Católica, "são mais facilmente coagidas, principalmente se a pessoa que manipula é próxima". "Há um sugestionamento no sentido de manter o segredo, uma dinâmica mais frequente no abuso intra-familiar em que há maior motivação dos elementos do sistema familiar para manter esta homeostase", alertou.
Denunciar primeiro à PJ para evitar a repetição dos relatos
José Matos, coordenador da secção de investigação de crimes sexuais da Diretoria de Lisboa e Vale do Tejo, disse mesmo que a educação sexual tem de começar o mais cedo possível. "Há crianças que são abusadas muito pequenas e elas próprias não sabem que estão a ser alvo de abuso sexual. Começaram desde cedo, na sua família, a lidarem com estas práticas, que são crime, mas para elas é normal. Estão no início da vida, estão a aprender a gatinhar e tudo é novo para elas, nomeadamente as atividades sexuais", referiu.
Naquela que foi a mais longa intervenção, num debate que durou quase cinco horas, José Matos apelou a que a primeira denúncia seja feita à Polícia Judiciária. "As nossas vítimas têm de expor a sua desgraça, demasiadas vezes e a demasiadas pessoas que não conhecem. Deveriam contar duas vezes, à polícia e ao tribunal. Em Portugal, a média de relatos é de oito", criticou, dando como exemplo o que se passa nas escolas.
"A criança conta à professora que está a ser abusada. Infelizmente, acontece muito e não devia acontecer, a docente vai exaustivamente fazer muitas perguntas e até condicionar o depoimento da criança. Depois chama o diretor de turma, o diretor do agrupamento escolar, a Escola Segura (programa da PSP), investigação criminal e o INEM. Quando chega a PJ, já querem desistir da queixa. Deviam contar-nos a nós pela primeira vez a situação", explicou, pedindo ainda que "no futuro todas as instituições não façam revitimização (com os vários relatos)".
Rute Agulhas também propôs a "diminuição do número de relatos" para melhorar as respostas ao combate ao abuso sexual e Carlos Farinha, diretor nacional adjunto da Polícia Judiciária, apelou a que "a sinalização seja cada vez mais precoce e célere de forma a desencadear investigação".
Rui do Carmo, Procurador da República jubilado, lembrou que os abusos sexuais continuam a decorrer "predominantemente em contexto intra-familiar" e que "o interesse superior da criança tem de orientar a intervenção que é feita".
"Ainda não conseguimos estabelecer um modelo que coloque a criança no centro da intervenção e andamos há demasiados anos a lamentarmo-nos do número de vezes que a criança é ouvida. Temos de poupar as vítimas ao sofrimento de processos repetitivos", observou, acrescentando que "tem havido avanços na legislação, que já nos permite fazer muito mais do que hoje fazemos, mas estamos muito longe de aplicá-la".
"Não vale a pena intervir"
Márcia Mota, do Serviço de Psiquiatria do Centro Hospitalar e Universitário de São João, disse que, nos últimos anos, tem vindo a receber "muitos pedidos de referenciação destes indivíduos (alegados abusadores)" e que se depara "com imensas dificuldades".
"Estas dificuldades têm a ver com desinformação dos próprios profissionais de saúde, nossos superiores hierárquicos, que muitas vezes não estão familiarizados com esta problemática, e acham que não tem solução e não vale a pena intervir", denunciou.
A "falta de recursos profissionais e estes assuntos não estarem na agenda de prioridades das instituições" foram outros dos problemas apontados por Márcia Mota que sugeriu "mais sensibilização e formação especializada dos profissionais nesta área".