Parados no tempo, nas zonas mais nobres do Porto e Lisboa, milhares de edifícios património do Estado encontram-se sem qualquer uso. Falta de interesse nos imóveis ou dinheiro para os reabilitar contribuíram para o aumento das casas devolutas. No interior, secretárias, cadeiras, materiais médicos e outros equipamentos permanecem como se tivessem sido usados ontem. Muitas vezes estão condenados à pilhagem.
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Habituamo-nos a vê-los a coabitarem com construção nova e à quase normalização do seu estado de degradação. Fazem parte da paisagem das cidades e nem Governo nem autarquias sabem ao certo quantos detêm. Em alguns funcionaram hospitais, departamentos da Segurança Social, infantários ou outros serviços públicos, e ainda há vestígios dessa utilização.
O antigo Hospital Maria Pia, no Porto, é um dos vários exemplos. Depois de mais de um século em funcionamento, fechou em 2012. Para o edifício, propriedade da Associação do Hospital de Crianças Maria Pia, está agora prevista a construção de um hotel de quatro estrelas. Tem sido aliás esse o destino de vários imóveis recuperados. Uma utilização da qual o arquiteto Tiago Mota Saraiva discorda. Defende que os prédios desocupados deveriam estar a ser utilizados para "fins habitacionais ou sociais".
"Esse edifício (Maria Pia) deve ser uma resposta para a população, acrescentar funcionalidades aquele território e não multiplicar o que já lá existe. Se de repente todos se transformarem em hotéis é um problema enorme para as cidades", observa.
Luís Mendes, geógrafo do Centro de Estudos Geográficos/ Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, partilha a opinião: "O património público devia ser reabilitado e colocado ao serviço do Município, criando-se bolsas de habitação e arrendamento acessível".
Não precisamos de ruínas ou edifícios emparedados, mas de lhes dar uso e de os retirar de processos especulativos
O investigador acredita que muitos imóveis ficaram devolutos porque "não se sabia o que fazer com eles". "A dinâmica de construção nova dominou o setor imobiliário durante muitas décadas em detrimento da reabilitação urbana. O Estado favoreceu a aquisição de casa própria com apoios à banca", repara. Tiago Mota Saraiva defende que em Portugal tem havido "pouca criatividade" quanto ao destino do edificado.
"Ou se acha que devem ser reabilitados pelo Estado, e tantas vezes não há dinheiro ou não está nas prioridades, ou que deve ser vendido e não há contexto político para o fazer agora, ou não há interessados para se construir o que o Estado quer. E ficamos à espera", diz. Para o arquiteto é preciso "acabar com a ideia de que o património público é sempre para dar rendimento e torná-lo de interesse público". "Há muito poucos espaços para produção cultural e edifícios à espera de intervenção dentro das cidades é uma coisa que faz muita confusão. Não precisamos de ruínas ou edifícios emparedados, mas de lhes dar uso e de os retirar de processos especulativos", aponta.
Em Lisboa, um prédio abandonado na Alameda Dom Afonso Henriques foi adquirido ao Estado pela Câmara para ser convertido em residências para estudantes. Enquanto as obras não arrancam, o edifício, que integra um itinerário da Direção-Geral do Património Cultural, tem vindo a degradar-se. Está cheio de lixo, vidros e cabos partidos, mobiliário e paredes vandalizados e fezes humanas. Até há pouco tempo era usado por sem-abrigo, como o JN Urbano constatou no local poucos dias antes da Câmara ter emparedado os acessos com tijolos.
Ali perto, o antigo Hospital do Desterro, é outro dos exemplos. "É inaceitável como está há anos parado no centro da cidade. É um edifício que não está a cumprir a sua função social", critica Tiago Mota Saraiva.
É imoral durante uma crise de habitação não haver capital ou vontade política para reabilitar património público
Luís Mendes defende várias medidas para se evitar o estado de abandono a que chegam muitos edifícios. Para o geógrafo, o Estado deveria agravar o imposto municipal sobre imóveis (IMI) aos proprietários de casas devolutas e, em casos excecionais, tomar posse administrativa ou assegurar o direito de preferência. Recorda que vários foram reabilitados com investimento estrangeiro, na última década, mas ainda há um número "assombroso" de prédios neste estado. "Em Lisboa há mais de 3000, mas não se sabe quantos pertencem à Câmara. Estão espalhados por toda a cidade com a placa de património municipal. É imoral durante uma crise de habitação não haver capital ou vontade política para reabilitar património público", diz.
Como bons exemplos do que já foi feito a nível de recuperação, Tiago Saraiva elenca a Fábrica Braço de Prata, em Lisboa, um centro cultural que ocupa as antigas instalações ou o Instituto, no Porto, um antigo armazém, abandonado durante décadas, que deu origem a um espaço cultural.
"Pela Europa há vários exemplos. Em Portugal ainda não acontece porque há muitos medos e uma grande burocracia e pouca prática de se perceber que um edifício em primeiro lugar é património público, alguma coisa que ali está que nos pode servir", conclui.