Entrevista com Luca Manucci, investigador do Instituto de Ciências Sociais, especializado no populismo e no legado dos regimes autoritários.
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Uma das questões centrais da sua investigação é o argumento de que o eleitorado do Chega tem uma imagem mais nostálgica do passado autoritário do que o eleitorado de outros partidos. Como é que chegou a essa conclusão?
São dados recolhidos no âmbito do projeto POLAR [Populismos e Legados dos Regimes Autoritários]. Fiz um inquérito em Portugal e em Espanha, para compreender os níveis de nostalgia autoritária e, no caso de Portugal, que é bastante similar ao caso da Espanha, percebi que, em quase todas as perguntas, o eleitorado do Chega é muito mais nostálgico de Salazar e do Estado Novo. Esses eleitores acham que, se os políticos de hoje recuperassem as ideias de Salazar, Portugal seria um país melhor. Ao mesmo tempo, sabemos, a partir de dados recolhidos por muitos colegas, que o eleitorado do Chega é também muito jovem. Ou seja, estamos a falar de nostalgia autoritária por parte de pessoas que não tiveram uma experiência direta do Estado Novo. Há uma aparente contradição. Uma interpretação possível é a de que não há nostalgia pelo passado autoritário como experiência pessoal, mas como narração mítica, como passado mítico. Diria que há um problema de transmissão de memória. Nos primeiros 45 anos da Revolução dos Cravos, a transmissão da memória foi bastante clara no sentido de estigmatizar o passado autoritário. Mas esse mecanismo deixou de funcionar. Podemos falar, se calhar, da italianização da memória portuguesa, no sentido em que também em Itália, depois de algumas décadas de memória muito negativa do fascismo, este tipo de memória acabou. Tal como em Portugal, meio século depois da transição democrática, regressam os partidos com uma memória do passado autoritário diferente e mais nostálgico.
Se manifestar nostalgia não é o mesmo que defender o regresso a um regime político derrubado há 50 anos, há pelo menos o desejo de recuperar alguns desses valores e práticas políticas do passado, para as aplicar no presente, é isso?
Acho que sim. Mas não estamos a falar de pessoas que querem uma nova ditadura amanhã. São pessoas muito desiludidas com o funcionamento da democracia, não com a democracia “per se”, pessoas que gostariam de mudar elementos da democracia atual.
Já se referiu antes à recuperação, por André Ventura, do lema salazarista “Deus, Pátria, Família”, ainda que este lhe tenha acrescentado o Trabalho. É só retórica ou há evidências de que a nova direita radical, e em concreto o Chega, tem pontos de contacto com o regime que foi derrubada a 25 de Abril?
É retórica, mas também ideológica. Com a estigmatização produzida em 50 anos sobre o passado autoritário, não é possível ao Chega desenvolver um tipo de retórica claramente saudosista ou nostálgica desse passado autoritário. Como acontece noutros países, é preciso utilizar referências mais subtis. Mas há ligações ideológicas. A definição da direita radical populista é a de ser nativista, autoritária e populista. Partidos como o Chega, a Liga em Itália, ou a Alternativa para a Alemanha (AfD) não são extremistas, não são contra a democracia, são, isso sim, iliberais, estão contra os elementos liberais da democracia, a separação dos poderes, as liberdades individuais das minorias, a liberdade da informação. Não estamos a falar de partidos que gostariam de destruir a democracia, mas de partidos, incluindo o Chega, que gostam de um tipo de democracia iliberal, o modelo já experimentado por Viktor Orbán, na Hungria.
Essa maior nostalgia pelo passado que demonstram os eleitores do Chega tem peso na afirmação eleitoral do Chega?
Sim, sem dúvida, é um dos elementos-chave do apelo do Chega, mas há outros. Por exemplo, desejar a privatização do sistema de saúde, ou a presença de um líder forte, carismático. Há muitos elementos. Nem todos os eleitores do Chega são nostálgicos do passado autoritário.
Que explicação encontra para ter sido preciso esperar quase meio século para que este tipo de discurso e de valores voltasse a ter expressão eleitoral e conseguisse representação no Parlamento?
Costuma dizer-se que a Revolução dos Cravos funcionou, durante quase cinco décadas, como uma vacina contra a direita radical. Vejamos o exemplo da Alemanha, que também assentou a sua transição democrática, depois do nazismo, sobre a ideia de nunca repetir os erros do passado, sobre uma fortíssima estigmatização dos ideais do nazismo do Hitler. Mas também na Alemanha temos agora a AfD com 15% a 20% nas eleições. A vacina é eficaz, mas não dura para sempre.
Aproveitando a metáfora da vacina, os cientistas políticos não classificam o Chega como um partido de extrema-direita. Ou seja, a vacina do 25 de Abril continua a ser eficaz, pelo menos em Portugal, no que diz respeito à ausência de representatividade da extrema-direita.
Exato, o Chega não é um partido de extrema-direita, esses são contra a democracia, não gostam de eleições. O Chega é um partido de direita radical que gosta da democracia, mas também gosta de fazer referências a um passado não democrático. É por isso que temos também, em ciência política, um outro termo, a ultradireita (“far right” em inglês), que junta a direita radical e a direita extrema. O Chega está agora claramente no campo da direita radical mas, tal como a AfD na Alemanha, há elementos dentro do partido que são parte de uma direita extrema.
Ainda a propósito da nostalgia pelo passado, a admiração por um líder forte, carismático, também ajuda a explicar o sucesso eleitoral do Chega?
Sem dúvida, André Ventura é muito forte como líder e não gosta de ter competição interna. O carisma do Ventura é uma das chaves de interpretação do êxito eleitoral do Chega. Isso é importante quando tentamos perceber porque foi o Chega e não outros partidos da direita radical a ter este êxito. Mas um outro fator que ajudou muito André Ventura é o facto de ter origem num partido moderado, o PSD. Aconteceu o mesmo em Espanha com Santiago Abascal, o líder do Vox, partido da direita radical, que beneficiou da legitimização que resulta do facto de ter sido membro do PP [Partido Popular, de Direita]. Ventura teve o mesmo percurso, foi membro do PSD, não tem a estigmatização da direita extrema. É um escudo de reputação, não pode ser um fascista, porque fazia parte da direita moderada.
Uma vez que uma parte do seu trabalho foi o de analisar os programas eleitorais, o que é que tem mais peso no programa do Chega, a rejeição da ordem política que se instalou com o 25 de Abril ou a recuperação de alguns dos valores centrais do regime anterior, como a soberania, a família, a identidade nacional?
A rotura com o sistema partidário instaurado no 25 de Abril é mais visível no manifesto eleitoral de 2019, que foi objeto da minha análise. São muitas páginas a explicar porque precisa Portugal de uma Quarta República, de um novo sistema político. Uma argumentação que foi um bocadinho perdida, nos anos seguintes, também porque foi criticada como demasiado radical. Relativamente à agenda política, é bastante parecida com a de todos os partidos da direita radical europeia: a luta contra as ideias de género, os direitos LGBTQ e os serviços públicos. É muito semelhante à agenda da União Nacional, em França, dos Irmão de Itália ou da AfD, na Alemanha. Mas não é reivindicada como sendo de continuidade com o salazarismo. Seria um grande erro, da parte do Chega, tornar explícito esse tipo de ligação.