Henrique Cyrne Carvalho: Precisamos de uma "via verde do parto" que inclua o privado
Diretor do ICBAS garante que a falta de médicos no SNS não se resolve com mais cursos de Medicina. Modelo de acesso ao Superior “é o melhor dos piores”, diz Henrique Cyrne Carvalho.
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Com a precisão de um cardiologista de intervenção, que já coordenou mais de 50 mil procedimentos, Henrique Cyrne Carvalho continua a abrir caminho numa das escolas médicas mais prestigiadas do país. A soprar 50 velas, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), no Porto, tem os olhos no futuro e recusa abrir mão da qualidade formativa.
O ICBAS já começou a pescar investigadores em universidades e centros de investigação nos Estados Unidos?
Ainda não, mas antecipámo-nos. Porque captámos, em tempos diferentes, professores que neste momento têm um protagonismo enorme ainda na vida científica e académica de Portugal, como o professor Alexandre Quintanilha, que veio de Berkeley para o Instituto de Ciências Biomédicas.
O ICBAS tem sido a voz do conceito One Health, que junta a saúde humana, a saúde animal e do ambiente. Esta abordagem pode ajudar a preparar próximas pandemias?
Não há saúde humana se não houver controlo da saúde animal e do ambiente, isso é absolutamente seguro. Isto surge no ICBAS porque é um campus com formação e desenvolvimento do conhecimento científico nestas três áreas. Tem os cursos de Medicina, Medicina Veterinária, tem as Ciências de Meio Aquático, a Bioquímica, a Bioengenharia, tudo se articula para esse propósito. O professor Corino de Andrade, um dos fundadores do ICBAS, em 1944, fala na importância da articulação entre o ambiente e a saúde humana e animal e dá o exemplo da malária, que era uma doença muito grave e que precisava deste tipo de abordagem.
Mas em que é que isso nos pode ajudar?
Primeiro, é preciso demonstrar que há uma quantidade de conhecimento que tem de ser trabalhado em conjunto. Veja-se o exemplo da pandemia: as alterações ambientais levaram a alterações da fauna e da utilização da fauna por humanos, seja como companhia, para consumo ou ambos. Havendo esse desequilíbrio, vetores que não afetavam o homem, passaram a fazê-lo. Outro exemplo: os veterinários não podem prescrever antibióticos de forma desorganizada à população animal que é utilizada para consumo. Esses antibióticos vão chegar ao ambiente e, a partir daí, desorganiza-se o ambiente e cria-se a resistência aos antibióticos, que é transmitida também aos humanos. Mais um exemplo: os peixes têm microplásticos que são incorporados no humano que os consome. Nada disto está separado e tem que ser pensado em conjunto.
É também de opinião que nos próximos anos teremos outras pandemias?
Não tenho dúvida nenhuma, só não sabemos é quando. Temos que estar preparados e procurar afastar as condições que aumentam a probabilidade. Quanto mais prevenirmos, mais atrasamos e teremos mais hipóteses de ter ferramentas para o seu controlo. A pandemia não foi uma história que acabou, é um filme que continua.
Um dos pilares do projeto One Health é a construção de um centro de investigação na Maia. Em que ponto está?
É a menina dos nossos olhos para o fim deste mandato. O projeto está pronto e é constituído por três unidades. Terá uma área vocacionada para o desenvolvimento da cirurgia experimental, que será feita em animal de experiência, mas também em simulação robótica para formação dos médicos, em articulação com o Hospital de Santo António. Outra unidade é para uma clínica cirúrgica de cavalos, que queremos que seja um centro de referência europeu para a formação de médicos veterinários, mas que sirva também a população que beneficia das técnicas de hipoterapia. E uma terceira unidade tem a ver com as terapias celulares, usadas no tratamento do cancro e das doenças autoimunes.
E isso para quando?
Estamos naquela fase mais difícil do financiamento. O município da Maia ofereceu o terreno à Universidade do Porto para desenvolver o projeto, que está pronto para ser submetido a candidatura de financiamento europeu. São aproximadamente 40 milhões de euros. Acredito que poderá começar a ser implementado no próximo ano.
Também já liderou o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas. As faculdades de Medicina podem fazer alguma coisa para resolver o problema da falta de médicos no SNS?
Parece-me uma abstração pensar que a criação de novas faculdades de Medicina vá resolver o problema da falta de médicos. Não tem nada a ver com o sentido corporativo, porque o que queremos é formar bons médicos para nos tratarem também. É sobretudo encontrar as soluções que passam muito para além daquilo que são o número de médicos formados.
Pagar-lhes bem e dar-lhes condições para trabalhar.
Não os deixar fugir, pagar-lhes melhor, dar-lhes incentivos e melhores condições de mobilidade para locais que são francamente deficitários de médicos. Mas não é só a remuneração, é carreiras, perspetivas, evolução do conhecimento. Não queremos formar uma massa amorfa de prestadores de serviços que hoje trabalham no sítio A, amanhã no B e no C ao terceiro dia. Queremos que as pessoas se sintam comprometidas com a estrutura a que pertencem, queremos médicos diferenciados para dar resposta às exigências das altas tecnologias de saúde. E não são precisas infraestruturas adicionais, é preciso uma rede que articule as que existem e, na minha perspetiva todas, não só as do setor público. Fui assessor do professor Seabra Gomes quando foi criada a via verde do enfarte do miocárdio. É preciso articular de forma clara, absolutamente transparente, de forma a fazer, noutras áreas, aquilo que foi possível fazer na Via Verde Coronária.
Uma rede com o setor privado?
Acho que vai ser a única maneira de conseguirmos com os recursos que temos neste momento, humanos e técnicos, dar resposta à maior parte das situações.
Em que áreas defende essa articulação?
As que são mais deficitárias, ginecologia/obstetrícia obviamente. Havendo menos recursos, temos que os articular melhor, fazer essa via verde.
Seria uma via verde do parto?
Sim, a via verde do parto.
Diz que o país não precisa de mais cursos de Medicina, mas não é necessário formar mais médicos? Os últimos governos têm pedido mais vagas, mas não abrem.
É evidente que aqui o problema tem a ver com financiamento. Têm-nos pedido para fazer mais omeletas com o mesmo número de ovos. As escolas médicas estão subfinanciadas. Houve uma tentativa na atual legislatura para rever os índices que definem o financiamento por capitação e por cada um dos cursos, que melhorou ligeiramente os cursos de Medicina, mas temos uma situação de subfinanciamento. Nós não podemos ter turmas práticas com mais de cinco estudantes, não podemos. Então para termos mais estudantes temos de ter mais hospitais com capacidade formativa, mais docentes e isso duplica os custos com recursos humanos. Não é só dizer que é preciso aumentar, é preciso pensar em todas estas variáveis para não deteriorar um princípio de que não abrimos mão: a qualidade da formação dos médicos em Portugal.
Há países com modelos de acesso ao Superior menos focados nas notas, optando pelas entrevistas para aferir se os estudantes têm capacidades comunicativas, empatia. Faz sentido continuarmos a exigir aos jovens que tenham quase nota 20 para serem futuros médicos?
É uma pergunta para a qual ninguém tem uma resposta certa. A avaliação apenas por nota de ingresso não é uma avaliação competente, mas é uma avaliação reprodutível. Isto é, todos estão submetidos no essencial às mesmas condições, concorrem sobre as mesmas regras.
É menos subjetivo.
Sim, é menos subjetivo. Sabemos, enquanto docentes que fazem orais todos os dias, que a nossa capacidade de avaliação não é reprodutível como é quando existe uma métrica clara. Portanto, este é o melhor dos piores modelos de avaliação.
Um estudo da OCDE mostra um desinteresse crescente dos alunos do Secundário nas profissões de saúde. Portugal ainda não está nesse ponto, mas há quem diga que é uma questão de tempo. Como é que se inverte a tendência?
Isso vai acontecer. Porque a evolução demográfica não é muito favorável e vamos ter no futuro menos estudantes e porque a decisão de uma profissão passa por vários fatores. A empregabilidade dos médicos já não é a mesma coisa e os jovens, atualmente, pensam muito em carreira, na exigência que a profissão de médico obriga. E há muita inovação tecnológica noutras áreas que atrai os jovens, como na Engenharia Aeroespacial. Vai seguramente haver uma diminuição de procura, o que quer dizer que a atratividade de um curso não pode ser focada apenas na prestação de cuidados, há outras saídas profissionais que os futuros médicos podem procurar.
E a inteligência artificial? De que forma é que as escolas médicas, e o ICBAS em particular, se estão a adaptar a esta nova realidade?
Estamos a fazer uma revisão curricular profunda, utilizando as ferramentas da inteligência artificial para constituir um modelo mais competente. Por outro lado, vamos incorporar neste novo plano curricular formação ao longo de todo o curso, porque a atualização vai ser constante. Temos que utilizar a inteligência artificial como uma boa ferramenta para sermos melhores médicos.
Em abril, foi distinguido com a medalha de ouro de serviços distintos do Ministério da Saúde. Gostava de integrar uma equipa ministerial?
Há perguntas a que não sei a resposta e há outras que sei definitivamente a resposta. Ministérios e lugares dessa natureza estou fora, definitivamente.